Gorda

Fotografia em preto e branco batida de baixo para cima em que aparecem o piso transparente e alguns pés nesse piso.

por Néliane Catarina Simioni*


Toda história contada é um corpo que pode existir.

Eliane Brum

Era janeiro de mais uma tarde quente em Cordeirópolis. Algo me inquietava naquelas férias, e eu tentava acreditar que o motivo do desassossego estava no da cidade de pouco mais de 20 mil habitantes. Dois anos antes, juntei minhas roupas GG em uma mala e me mudei para São Paulo a trabalho. Desde então, ficar em Cordeirópolis causava-me o desconforto de uma calça apertada.

Quando minha mãe entrou no quarto, eu comia um pedaço de bolo de brigadeiro comprado uma hora antes na La Bella Massa, a rotisserie da Dona Irma; simplesmente o melhor bolo do mundo.

— Oi, filha. Tudo bem?

— Oi, mãe. Tudo, sim, e você?

— Tudo! Como foi a consulta com a terapeuta? Pelo jeito não adiantou muito, né… Já está comendo doce.

— É…

Na mordida seguinte, o bolo de brigadeiro da Dona Irma estava amargo.

Eu não tinha ido à terapeuta. Na verdade, fui a uma astróloga, para que ela fizesse a leitura do meu mapa astral. Gêmeos com ascendente em sagitário e lua em leão. Quando comecei a comer o doce, pensava no que foi apresentado na interpretação do mapa. Sentia uma espécie de sufocamento, uma vontade de gritar e fugir de mim, que foi reforçada pelo comentário da minha mãe.

Sou parte de uma estatística da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica. Segundo números da entidade, cerca de 10% das pessoas que passam por um procedimento cirúrgico para reduzir o estômago voltam a engordar no Brasil.

Por este dado literalmente “pesar na minha”, um dia antes de fazer a leitura do mapa estive no consultório do médico que fez a redução do meu estômago. Fui checar se estava tudo bem, pois a família andava cismada. Na festa de réveillon, juraram que o órgão havia dilatado com o tanto de cerveja que bebo. Minha mãe me acompanhou na consulta. Antes de entrarmos, mandei:

— Mãe, se o Dr. Alcide falar que eu tenho que fazer uma cirurgia de reparo no estômago, não farei…

— Mas, por quê, filha? Se ele disser, é porque será bom para você.

— Eu sei o que significa esta cicatriz na minha barriga, mãe. Não quero mexer nela. E outra, era uma criança quando fiz a cirurgia, né? Não estava nem aí pra saúde e não entendia nada direito… Só queria que gostassem de mim…

O corte

Fiz redução de estômago em 19 de junho de 2007, um dia depois do meu aniversário de 19 anos, cerca de um ano após minha mãe também tê-la feito. Na época, se tivesse primeiro buscado me estruturar emocionalmente, talvez pudesse ter recorrido a métodos menos invasivos para extinguir os cerca de quarenta quilos que engordei durante e após minha estadia em Campinas.

A chegada à universidade foi um período doloroso. Comecei a estudar Terapia Ocupacional na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP), mas, matriculada por seis meses, frequentei pouco mais de três semanas de curso.

Longe de casa, minhas inseguranças de adolescente cresciam à flor da pele. Acreditava que nunca seria aceita pelas meninas da sala, que, diferentes de mim, eram magras, gostosas, normais. Tentava me manter invisível, até ser despida em uma aula de anatomia. O professor contava com o auxílio de um projetor para passar algum conteúdo, porém um feixe de luz insistia em atrapalhar suas explicações. Estava sentada próxima à janela, então levantei para ajeitar o acortinado preto. Ele, o mestre, descreveu perfeitamente a cena. “Ah lá, a gordinha vai nos ajudar com a claridade”.

Comi compulsivamente nos meses seguintes. Saía do apartamento apenas para buscar alimentos e não contei a ninguém que havia parado de ir às aulas na PUC. Os salgadinhos vendidos pela vizinha de porta e o mousse de maracujá da padaria em frente ao prédio foram refúgios, até me descobrirem novamente. Caminhava ao encontro de um doce quando crianças que jogavam bola na quadra do condomínio me viram. A música Glamurosa, do Mc Marcinho, estava no auge. Um dos meninos criou uma paródia: “Gordurosa, rainha do funk! Poderosa, olhar de diamante”.

Voltei para Cordeirópolis. Do meu tempo enquanto estudante de T.O. em Campinas, ficou a frase anotada em uma folha de fichário no início do curso:

“Somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos.” (Eduardo Galeano)

***

As consultas com o médico e a astróloga aconteceram sete anos depois, em 2014. Nesse intervalo de tempo, naturalmente, muita coisa aconteceu. Emagreci cerca de 60 quilos, comecei e terminei uma faculdade de jornalismo, ganhei alguns quilos, morei em São Francisco (Estados Unidos) por conta de um intercâmbio de três meses, ganhei alguns quilos e me mudei para São Paulo, onde, definitivamente, ganhei outros tantos quilos. Tive, também, uma relação muito feliz com o Fábio, que conheci um ano e meio após a redução e, portanto, magra. Terminei nosso namoro no dia em que o bolo de brigadeiro da Dona Irma mudou de sabor. Não sabia o que estava fazendo ao certo, mas sentia que precisava estar só para compreender alguma coisa que ainda não tinha nome.

O mergulho sem fim

Os resultados dos exames estavam ótimos e Dr. Alcide não recomendou uma cirurgia de reparo em meu estômago. Disse apenas que seria interessante a ajuda de um nutricionista e de um psicólogo. Retornei a São Paulo e comecei um regime à base de diet shake. Por algumas semanas – o mesmo tempo que durou a dieta – também chorei o rompimento com o Fábio, mas não demorou e o remorso foi embora. Nascia a euforia de estar solteira na capital.

Instalei o Tinder, aplicativo de paquera que oferece ao usuário conhecer pessoas que estão próximas a ele. No fundo, queria saber se era possível encontrar alguém com interesse em mim, mesmo gorda. Eis que no primeiro match ou combinação conheci Lian. Começamos a conversar e em três semanas criei coragem para marcar uma cerveja com ele. Até chegarmos ao bar, eu já estava apaixonada. Além dos muitos assuntos em comum, ele reagiu perfeitamente às mensagens subentendidas que mandei. Não tinha coragem de dizer “oi, você está conversando com uma gorda” – e também existia um dilema neste ponto: qual a necessidade de falar isso? Ele já não viu minhas fotos? Por que vou fazer essa afirmação, quase como um pedido de desculpas? –, mas caía em jogos de perguntas relacionadas às minhas inseguranças. Por exemplo, falávamos sobre como um imaginava o outro, e suas respostas me deram alguma confiança para vê-lo pessoalmente.

Eu e Lian ficamos já em nosso primeiro encontro e, de repente, me sentia completa. Alguém tinha me aceitado in-tei-ra, sem um mas. Ela é linda, mas podia emagrecer. Pela sua saúde. Ela tem um rosto lindo, mas se fosse mais magra. Nossa relação foi intensa e breve na mesma medida. Ele chegou e se foi duas vezes, ambas com surpresa. Sua chegada coincidiu com o momento que comecei a fazer terapia. Sua partida me destruiu, porém despertou meu protagonismo nas sessões.

Comecei a falar sobre meu corpo com frequência. Contei traumas de uma infância em que escrevia em diários, aos sete anos, que gostaria de emagrecer para deixar meus pais felizes; e de uma adolescência em que aprendi que era preciso ser magra para um menino gostar de mim. Também relembrei das dietas, nutricionistas e endócrinos, dos períodos em que perdi peso significativamente, como aos 15 anos, após fazer uso de Fluoxetina e Sibutramina, e dos questionamentos que fazia aos médicos que me davam esses remédios: Mas, por que tenho que ser magra?

Remontei o capítulo da cirurgia bariátrica e timidamente passei a expor as marcas que a operação havia me deixado. Era como se a cicatriz de fora a fora que existe em minha barriga (bariátrica + abdominoplastia) me mostrasse todos os dias meu pior em duas situações. Na primeira, ela estava lá, em um corpo gordo, apenas para lembrar que fracassei. Como você pôde engordar depois de ter passado por uma redução de estômago? Você é mesmo uma fraca. No segundo caso, era o oposto. Como você pôde se reduzir a um corpo e fazer uma operação de redução do estômago aos 19 anos? Você é mesmo uma fraca.

Gordura é resistência

Aos 25 anos, descobri um nome muito feio: gordofobia. Senti na pele as piadinhas por ser gorda, no entanto, não compreendia que existe um sistema estrutural que discrimina pessoas gordas de diversas formas, geralmente alegando que o problema não está na estética, mas, sim, na preocupação com a saúde.

A escritora Jarid Arraes tem várias publicações sobre o assunto. Uma delas, postada na página Blogueiras Feministas, explica:

“Não é necessário nenhum esforço extraordinário para compreender a gordofobia; a própria palavra sugere um acentuado desconforto e sentimento de repulsa contra pessoas gordas. Tal postura é tão enraizada em nossa cultura que a maioria das pessoas imediatamente remete pensamentos gordofóbicos às mais variadas imagens e situações: por exemplo, acham inaceitável uma mulher gorda vestir roupas justas ou frequentar a praia de biquíni; sentem desprezo por um homem obeso que come prazerosamente na praça de alimentação do shopping”.

No parágrafo seguinte, o texto toca em minhas cicatrizes invisíveis.

“Para as mulheres, é excepcionalmente difícil ser gorda em meio ao culto dos corpos magros sem odiar a si mesma ou ser odiada. Não gostar de si mesma já é praticamente uma exigência social para toda mulher, cujo valor é inteiramente atribuído à sua aparência; o que dizer então para as mulheres gordas? […] Para aquelas que foram ‘gordinhas’ desde a infância, é incrivelmente comum crescer com ódio internalizado de si mesma: são muitos anos de bullying e cobranças sociais, que acontecem não apenas no ambiente escolar, como também na televisão, nas revistas, nos círculos sociais de amizades ou no núcleo familiar”.

Cresci dividida entre não querer ser gorda e desejar apenas ser gorda em paz. Com mais de um ano de terapia, ainda me via perdida entre essas vontades. Resistia em ser parte de uma minoria1.  sendo quem sou. O preconceito com o gordo – comigo(!) – também estava em mim. Deveria ser simples para todos: um corpo gordo é o contrário de um corpo magro. Mas, não é. Foi necessário desconstruir a imagem social do gordo – e reconstruir minha imagem – para me empoderar. O feminismo foi uma das principais ferramentas para isso.

Gordura é uma Questão Feminista é o título de um livro da psicoterapeuta Susie Orbach. Em suas primeiras páginas, encontrei o seguinte:

“A compulsão de comer é uma atividade muito penosa e, aparentemente, autodestrutiva. Mas, o feminismo ensinou-nos a desconfiar de rotulações desse gênero. Ensinou-nos que certas atividades, que parecem ser autodestrutivas, são, invariavelmente, adaptações, tentativas de enfrentar o mundo”.

A autora segue contando sua experiência em um grupo terapêutico formado por mulheres gordas e magras que se conheceram em um curso sobre compulsão de comer e autoimagem.

“Em nosso grupo, viramos às avessas nossas ideias fortemente arraigadas sobre dietas e magreza […]. Aos poucos e com insegurança, paramos com nossas dietas. Nada horrível aconteceu. Meu mundo não desabou. Carol levantou a questão principal: talvez não quiséssemos ser magras. É claro que eu queria ser magra, eu seria… As reticências ficaram com a resposta. Eu magra seria diferente de quem eu era. Decidi que não queria ser magra, não havia nada demais nisso. Os homens ficam mexendo com a gente, viramos objetos sexuais. Não, decididamente, não queria ser magra… Desenvolvi um novo raciocínio político para não ser magra – não me tornaria aquilo que as revistas de moda queriam que eu fosse […]. Relaxei, comi o que quis e vesti as roupas que tinham a ver comigo. Senti-me, até mesmo, um pouco prosa. Ignorava as colunas de dieta dos jornais, apreciava as diferentes fases gastronômicas pelas quais passava e andava pelas ruas sentindo-me cada vez mais confiante. No entanto, aquelas reticências continuavam a me perturbar. Por que tinha medo de ser magra? Comecei a visualizar as coisas que me apavoravam. Ao mesmo tempo em que as confrontava, perguntava a mim mesma como o fato de ser gorda poderia me ajudar naquelas situações? O fato de ser magra me causaria mais dificuldades em quê? Quando as imagens das minhas personalidades gorda e magra se fundiram, comecei a perder peso […]. Aprendera uma lição decisiva: era a mesma pessoa, gorda ou magra”.

Nós, Madalenas

Com o desabrochar do feminismo em minha vida, comecei a sentir necessidade de me posicionar efetivamente. Foram/são muitas as leituras sobre o tema. Em graus diferentes, todas as mulheres se acorrentam a padrões de beleza irreais alimentados pela mídia e impostos por uma indústria que lucra com nossa insatisfação.

O propósito do projeto Nós, Madalenas é questionar essa ditadura apresentando mulheres de diferentes idades, corpos e contextos de vida em uma série de retratos em preto e branco e sem qualquer tipo de tratamento digital. Cada uma definiu uma palavra para representar a sua relação com o movimento feminista e posou para as lentes da fotógrafa Maria Ribeiro, que reuniu as imagens em uma página no Facebook.

Minha escolha foi plenitude. Fui fotografada no dia 26 de março de 2015 e quase morri de vergonha. Quando a foto foi publicada, não autorizei que ela fosse exibida em meu perfil na rede social. Encontrei mil defeitos. Uma gorda com a palavra plenitude estampada no braço. Que farsa.

Os meses se passaram. Comecei uma pós-graduação em Jornalismo Literário, outros encontros do Tinder aconteceram, o Nós, Madalenas ia virar livro e eu precisava mandar o texto que seria publicado junto ao meu retrato.

Não sabia o que escrever, mas também não declinava minha participação. Enquanto demorava, li uma entrevista2 da jornalista Eliane Brum com o ativista Carlos Moore no El País. Ele tinha acabado de lançar sua autobiografia, Pichón – minha vida e a revolução cubana (Nandyala Livros, 2015).

Eliane abre o primeiro bloco de perguntas da matéria com o subtítulo “1) O primeiro exílio de um negro: o do ser.” Moore discorre sobre sua vida enquanto negro e exilado:

“(…) aí já se criava um corte fundamental, que era o corte comigo. Eu não sabia quem eu era, porque eu queria ser outro. Porque esse outro é que era o bom, o bonito, o que todo mundo queria.”

A conversa chega ao assunto mãe, que germina uma sequência lacerante de perguntas e respostas:

“Eliane Brum: Sua mãe era uma mulher brutal, mas, quando o senhor criou uma mãe imaginária, criou uma mãe branca, em vez de uma mãe negra. Isso vem de uma outra brutalidade, né?

Carlos Moore: Sim. Eu me retirava para o fundo do jardim para falar com essa mãe, e ela era carinhosa comigo, sempre sorridente e com uma voz suave, e nós fazíamos tudo juntos. […]. Eu me colocava na escuridão, à noite, no fundo do pátio, entre dois coqueiros, e essa mãe vinha. Eu tinha uns 7 anos, e ela era real pra mim. Ela sempre me perguntava se eu estava contente. E eu dizia que não, que eu queria fugir, que ela me ajudasse a fugir. Toda a minha infância eu passei meu tempo a querer fugir. Fugir foi a coisa mais poderosa da minha infância.”

Desde criança eu sabia do ‘mas’ que me foi colocado. Obviamente não entendia, mas sentia o cuidado sem medidas dos meus pais, como se quisessem me proteger de uma provável rejeição. Na escola, eu não entendia também, mas nunca era de mim que os meninos gostavam. E eu precisava ser amiga das garotinhas certas para que eles fossem meus amigos. Em alguns dias, me esforçava para ser legal com todos. Em outros, me transportava para um mundo fantasioso onde às vezes aparecia gorda e às vezes surgia magra, mas sempre estava linda e era muito amada. Até pelos animais, que conversavam comigo. A viagem geralmente acontecia em algum lugar escondido – embaixo de mesas, em cantos despercebidos da casa – e o bilhete de ida era sempre um doce em minhas mãos.

“EB: Fugir do quê? E para onde?

CM: Eu ia andar, andar, andar, andar toda a noite, até chegar ao porto. […] Eu já estava totalmente alienado de mim. Queria ser branco, queria somente ter amigos brancos, queria mudar de pele, queria mudar de cabelo, de tudo. Esse foi o primeiro exílio, um exílio ontológico. Normalmente as pessoas sabem o que são, elas são o que são, não se colocam a questão. Mas eu não sabia, eu não queria ser o que eu era e, pelo fato de não querer ser aquilo, não sabia o que eu era.”

Na adolescência, as viagens aconteciam antes de dormir. O cenário agora já não era um mundo encantado onde até os bichinhos me notavam, mas, sim, festas da escola, onde eu não ficava de fora nas dancinhas em dupla. Aparecia sempre magra e muito poderosa. O menino mais popular era o meu par. Despertava. Ia até a cozinha procurar por algum leite condensado escondido pela minha mãe.

“EB: Como é que é não saber o que se é?

CM: Você se sente constantemente num estado de falta […].”

Os trechos descritos aqui foram levados à terapia e trabalhados profundamente. Se, por acaso, alguém se deparar com o livro Nós, Madalenas – uma palavra pelo feminismo (Fonte Editorial, 2015) encontrará minha foto com a palavra plenitude estampada em meu braço direito. Acompanhada dela, um relato que mistura Carlos Moore e Susie Orbach, com o explícito final de Eduardo Galeano.

Néliane Catarina Simioni

Eu não sabia quem eu era, porque queria ser outra. Porque ser magra que era bom e bonito – o que todas as mulheres querem ser. Então, fiz uma gastroplastia, um corte comigo mesma, que me fez perder peso radicalmente. Finalmente seria aceita! Pude vestir roupas justas; andar com a turma popular da cidade; ser vista. Mas, algo de errado aconteceu, pois voltei a engordar depois de um tempo. Novamente fracassei na tentativa do corpo perfeito. E aí me levaram ao médico que realizou a cirurgia. Talvez fosse necessária mais uma intervenção em meu estômago, algo reparador. Epa! Nenhum bisturi vai encostar na minha cicatriz.

Comecei a me perguntar por que queria um corpo tão “em forma” e o que havia de tão poderoso nisso. Em busca de respostas, comecei a fazer terapia. Entendi algo decisivo: sou a mesma pessoa, gorda ou magra. E o feminismo floresceu nesse processo de autoafirmação.

Descobrir quem sou me libertou. O estado de falta foi embora e deu lugar à totalidade. Hoje, sou. E posso ser quem eu quiser.

“Somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia.” (Eduardo Galeano)

A balança final

Nós, Madalenas – uma palavra pelo feminismo foi publicado em dezembro de 2015 e o tempo passou mais uma vez. Natal em Cordeirópolis, réveillon na praia, a rotina do trabalho, as cervejas com os amigos, a pós, as festas, as sessões de terapia, os encontros e reencontros e a hora de começar este ensaio.

Novamente me demorei. Questionei-me muitas vezes se queria mesmo escrever sobre a grande questão da minha vida. Não pelas dificuldades que encontraria, mas porque, ao dar forma ao meu processo de aceitação, também assumiria uma posição. Gorda.

Estou pronta para isso? Não quero mesmo perder uns dez quilos? Tudo bem se um desconhecido me descrever como gorda? E um conhecido? E se alguém da família disser que preciso emagrecer? E se um cara não ficar comigo porque sou gorda? Mas, se eu transo de luz apagada, realmente me aceitei?

As respostas oscilam de acordo com a conjunção astral e meu humor, e tudo bem! Sou gorda e fiz um mergulho sem fim para nadar fundo e em mar aberto nessa vida. Em mais um dia extraordinariamente comum comecei este relato. Meu desassossego não deve ir embora para sempre com o seu ponto final, mas o bolo de brigadeiro da Dona Irma… ah… o bolo de brigadeiro da Dona Irma… este é o melhor do mundo!

Referências

ARRAES, Jarid. Gordofobia: um assunto sério. Blogueiras Feministas. Disponível em: <http://blogueirasfeministas.com/2012/09/gordofobia-um-assunto-serio/>. Acesso em: 5 mai. 2017.

BRUM, Eliane. Meus Desacontecimentos. São Paulo: Leya, 2014.

BRUM, Eliane. Um negro em eterno exílio. El País Brasil. Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2015/08/31/opinion/1441035388_761260.html>. Acesso em: 5 mai. 2017.

GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2002.

ORBACH, Susie. Gordura é uma questão feminista. São Paulo: Record, 1978.

RIBEIRO, Maria. Nós, Madalenas – uma palavra pelo feminismo. São Paulo: Fonte Editorial, 2015.

*Néliane Catarina Simioni é jornalista e assessora de imprensa. E-mail: neliane.simioni@gmail.com

  1.  Minoria social – coletividade que sofre processos de estigmatização e discriminação, resultando em diversas formas de desigualdade ou exclusão sociais.
  2.  O nome da matéria é Um negro em eterno exílio. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/08/31/opinion/1441035388_761260.html.

1 resposta a “Gorda”

  1. “Cresci dividida entre não querer ser gorda e desejar apenas ser gorda em paz.”

    Não consigo dimensionar o quanto essa frase descreveu perfeitamente a minha vida nessa terra. Ótimo texto, parabéns!

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