A intolerância em cartaz na escola

livros empilhados e lápis de cor enfileirados


por Marcel Gugoni*


Está para entrar em cartaz, nos espaços escolares, uma tragédia das mais obtusas, com cenas farsescas de gosto duvidoso. A referência aqui não é ao cinema, nem ao teatro, mas aos projetos do Escola Sem Partido (ESP), uma espécie de sereia contemporânea1, que tem atraído apoiadores2 e feito um barulho que é muito mais ensurdecedor se colocado diante das ínfimas medidas práticas a que se propõe.

Os projetos do Escola Sem Partido são, ainda, rascunhos de propostas (oficialmente chamados de anteprojetos de lei) para as esferas do legislativo federal, estadual e municipal, cujo teor é o de fazer valer um conjunto de deveres do professor em sala de aula a fim de combater o suposto abuso da liberdade de ensinar e informar e conscientizar os estudantes3. Em suas três versões, os anteprojetos determinam que todas as instituições de educação básica afixarão cartazes nas salas de aula e nas salas dos professores explicitando tais deveres.

Surgido em 2004, o movimento que culminou nesses projetos viveu quase uma década na insignificância, amplificando sua voz nos espaços públicos (reais e virtuais) à medida que as redes sociais digitais abriam canais de comunicação direta, não mais mediada pelas comunidades institucionais tradicionais (como a escola, os jornais, a igreja etc.), entre os indivíduos. É notável o modo como esses meios determinam a pauta dos nossos discursos a partir de algoritmos, cujo efeito prático é aproximar pela semelhança gostos, ideias, opiniões, aparências, futilidades; naturalmente, isso implica em afastar o diferente4.

Muitos grupos sociais fazem desses meios uma ferramenta ímpar de ação positiva e propositiva, levando para a esfera da ação política suas causas, sejam elas contrárias ao aumento das tarifas dos transportes, críticas à persistência da nefasta violência à mulher, favoráveis ao respeito e à valorização cultural de quilombolas, indígenas, imigrantes etc. As causas são muitas, e é importante lutar por elas. O paradoxo democrático reside justamente no fato de, em prol da aceitação e do reconhecimento da multiplicidade humana (suas causas, suas ideias, suas crenças), se abrir espaço a propostas antidemocráticas.

É sobre esse mesmo paradoxo que se assenta o discurso dos projetos do ESP. Suas principais teses podem ser resumidas nos seguintes itens: a coibição da propaganda político-partidária em sala de aula e o respeito ao direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções5. A fim de garantir que alunos não sejam (supostamente) cooptados por partidos políticos ou por utopias revolucionárias, abre-se precedente para monitoramento em tempo integral do trabalho do docente, instaurando um Grande-Irmão-da-moral-e-dos-bons-costumes-na-escola. Uma clara contradição, pois, no discurso, os projetos recorrem à democracia para, na prática, suprimi-la6.

A estratégia é a de gritar em favor dos direitos dos alunos e de suas famílias – não importando que, para isso, sejam ignoradas a função social da escola e as bases das propostas educacionais vigentes, calcadas na pluralidade social, na diversidade ideológica, no reconhecimento da alteridade como inerente ao ser humano. A seção “perguntas e respostas” do site do ESP prevê possibilidade de punição ao professor que descumprir os deveres do cartaz, nega que essa prática seja censura ao papel docente, defende a manutenção de “valores morais” (em outras palavras, os valores da religião hegemônica e do conservadorismo) na escola e rejeita o rótulo de ideológico aos projetos. Em suma, tenta se vestir com um manto de neutralidade, por cuja trama é possível ver um partido e uma ideologia impregnados.

O Escola Sem Partido se esquece do básico: de refletir em que consiste a educação e qual sua função social.

Por fim, vale questionar do que um cartaz é capaz nas salas de aula da sociedade contemporânea? Na eventual possibilidade de ser aprovado7, o caminho é ignorar seu canto de sereia, a fim de resguardarmo-nos à luta por questões realmente essenciais e relevantes, em favor da tolerância, da inclusão, da cooperação, do respeito à diversidade. Dois pontos para começar: exigir que a Carta Magna se efetive, em plenitude, na garantia da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (Art. 206, I) e na valorização dos profissionais da educação escolar (Art. 206, V).

* Marcel Gugoni é editor de livros didáticos, graduado em Jornalismo e em História, especialista em Comunicação Digital pela ECA-USP. E-mail: marcel.gugoni@gmail.com.

  1.  O canto da sereia, a dos mitos gregos, ressoa de maneira sedutora a fim de atrair homens incautos ao encontro dela em uma ilha isolada, fazendo-os naufragar no caminho; entende-se, na Odisseia, que escapar do canto da sereia é uma forma de eliminá-la. O projeto, nesse contexto, ilude pela sua proposta estridente; e é preciso ignorá-lo.
  2. Enquanto escrevo estas linhas, o ESP já rendeu ao menos sete dezenas propostas de projetos nas esferas estadual municipal (disponível em: <www.nexojornal.com.br/expresso/2017/11/12/O-mapa-que-registra-projetos-da-Escola-sem-Partido-no-pa%C3%ADs>, acesso em: 14 dez. 2017>), em tramitação ou não, como é o caso do PL 325/2014, que roda no legislativo paulistano (disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/escola-sem-partido-avanca-na-camara-de-sp-e-ja-pode-ser-votado-em-plenario.ghtml>, acesso em: 14 dez. 2017); e sofreu um revés na esfera federal com remoção do projeto da pauta do Senado (disponível em: <www.revistaforum.com.br/2017/12/08/projeto-escola-sem-partido-e-arquivado-no-senado/>, acesso em: 14 dez. 2017).
  3.  Os grifos são dos termos usados no site do projeto Escola Sem Partido (disponível em: <www.programaescolasempartido.org/>, acesso em: 11 dez. 2017).
  4. Equivale a dizer, de alguma forma, que a internet privilegia a informação e a efemeridade em detrimento da reflexão, da memória e dos sentidos.
  5.  Grifos nossos, para transcrever respectivamente os itens n.º 3 e o n.º 5 dos deveres do cartaz, disponível em: <www.programaescolasempartido.org/wp-content/uploads/2017/06/cartaz-deveres-do-professor.png>, acesso em: 13 dez. 2017.
  6. Nesses dois itens se exprimem, respectivamente, e de modo bastante deturpado, os artigos 205, II, da Constituição Federal (BRASIL, 1988); e 12, IV, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CIDH, 1969).
  7. Dadas as manifestações do poder público a respeito da inconstitucionalidade do projeto (disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2016-07/mpf-diz-que-escola-sem-partido-e-insconstitucional-e-impede-o-pluralismo>, acesso em: 15 dez. 2017), a possibilidade de aprovação e efetivação desses projetos é nula, mas não inexistente.

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