Entre o sagrado e o profano

Figura em preto e branco do Largo do Paissandú. À esquerda, um prédio antigo em primeiro plano e, em segundo, logo na parte de cima, algumas folhas de árvores. O Fotógrafo estava embaixo dessa árvore para tirar a foto. Na parte de baixo da foto, duas faixas de pedestres marcadas com linhas brancas horizontais. Ao lado do prédio antigo com pixações, há um prédio ao fundo em branco. Atrás dele, um céu limpo em tom de cinza. Ao lado do prédio branco, ao centro da fotografia, há outro prédio antigo com pixações e coberto em seu lado direito de uma sombra. Do lado esquerdo, já à direita da foto, é iluminada pelo Sol e tem uma cor mais clara, também, cheia de pixações. Abaixo desse prédio, um carro cinza passa pela rua. Nas calçadas, pedestres caminham.

por Lucas Valim* e Victor Santos**


Vale do Anhangabaú, por Lucas Valim
Vale do Anhangabaú, por Lucas Valim

Segundo o prefeito Fernando Haddad, o processo de reocupação do espaço público da cidade de São Paulo tem contado com iniciativas em transporte público, ciclovia, comida de rua, artista de rua, grafite e praça wi-fi. Essa diversidade de ações é articulada por um “novo paradigma” de política pública no qual o grafite, em especial, é entendido como parte das vanguardas estéticas que ajudam a criar um novo modelo de apropriação do espaço.

A fala do prefeito consagra um longo histórico de luta por reconhecimento das intervenções visuais urbanas, que foram duramente reprimidas desde a década de 1980. Antes entendidas apenas como transgressão e sujeira, evitadas com prisão e limpeza, passaram por um processo de ressignificação, por meio de trabalhos como os dos estudantes Alex Vallauri e Rui Amaral, que souberam utilizar o grafite para alcançar visibilidade extrainstitucional, ao mesmo tempo em que colaboravam para a legitimação desse modo de intervir na cidade. Esse grafite vindo da academia se distanciou do restante das intervenções urbanas, avançando sobre o campo das artes, processo que não abarcou a pixação e o pixo reto paulista.

Para ver: Point da Pixação – Fachadas, muros e topos de prédio no Largo do Paissandú, centro de São Paulo.

 

Largo da Batata, por Lucas Valim
Largo da Batata, por Lucas Valim

Desde então, o grafite tem sido reconhecido no meio artístico e absorvido por modelos tradicionais de produção e exibição, como a Bienal Internacional de São Paulo, a Bienal Graffiti Fine Art, os museus e as galerias. Como exemplos dessa museificação, podemos apontar os projetos de pintura mural patrocinados pelo poder público: Museu Aberto de Arte Urbana, Cohab na Copa, Projeto 4KM, Túnel da Paulista e Mural da 23.

Esse processo tem absorvido o grafite como uma das estéticas da arte, garantindo prestígio e espaço aos seus praticantes e obras e inserindo São Paulo no contexto das metrópoles globais criativas. Ao obterem autorização para intervir no espaço público, devido ao seu relevante valor artístico, passam a servir como barreira de contenção à tomada deste de maneiras não mediadas e como bloqueio ao que as intervenções visuais propõem de radical em direção ao direito à cidade: sua ocupação por indivíduos que não pretendem se colocar como artistas e nem serem reconhecidos como tais.

É estimado que entre 10 e 15 mil jovens, a maioria das periferias, pratiquem a pixação como modo de intervir no espaço construído, como expressão criativa e corporal de uma relação de descobrimento e ressignificação da cidade, de significação de si e do outro.
Como um dispositivo de controle sofisticado, o grafite tem servido ao afastamento de outras práticas espaciais que mais se baseiam na sociabilização no espaço público e na deriva urbana, literal leitura-escrita do e no espaço. Os projetos públicos de grafite visam assegurar espaços privilegiados a uma das estéticas presentes na rua, garantindo a manutenção de uma nova monumentalidade, que insere São Paulo no circuito internacional de street art e invisibiliza outras estéticas e práticas espaciais. Ainda assim, a pixação permanece, em toda a metrópole, sendo potente expressão criativa de indivíduos e grupos segregados na cidade.

*Lucas Valim é fotógrafo.
**Victor Santos é geógrafo e produtor cultural.

Largo da Batata por Lucas Valim
Largo da Batata, por Lucas Valim.

 

 

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