Filho é pro mundo, o meu é meu

Fotografia de uma paisagem com montanha e céu. A montanha é composta por uma grama baixa. Nela estão 3 adultos distantes um do outro e duas crianças.
Foto: by Fas Khan on Unsplash

por Marcelo da Silva Antunes*

Se eu criei é meu. Claro que é meu. Dei peito e tudo. Qual o critério de boa mãe, agora? Hein? E se eu tivesse abortado? Como estariam me julgando? Uma psicopata? Uma mulher louca? Vocês são todos hipócritas. Vá tentar adotar uma criança pra ver. É uma burocracia tremenda. Prestação de conta de tudo, exame de tudo. Onde já se viu? Daqui um tanto vão vender órfãos na Casas Bahia. Não vejo problema. Se parcelar. Melhor. Eu mesmo compraria uma porção, um de cada cor. Comprava e parcelava em quantas vezes o cartão desse. Mesmo que dobrasse o preço. Eu não comprei até geladeira assim? Com essa vida que nóis leva aqui é duro. Tudo é no carnê, no cartão, na prestação, tudo tem um parecer, tudo é contado, dividido, multiplicado, igual Jesus fez com peixes. É o milagre de ser pobre por aqui. E não estou reclamando. Acho até que dei sorte. Tenho dois fio lindo e não pago aluguel. Graças a Deus. E além do mais. Tem sempre alguém pior. Ô se tem. 

Meu filho Jefferson é lindo. Acho até que parece comigo. Dizem que não. Que é branquelo, que tem olho claro e eu sou uma neguinha do cabelo duro. Povo faladeiro. Eu nem ligo. Falo logo que o pai dele é loiro, que meu avô era loiro e mando cuidar da vida, com essa gente é assim. Tudo que preciso é dos meus filhos. Compro tudo o que posso. Juliana vai fazer 18 anos, vai tirar a carteira de trabalho, disse querer me ajudar. Falei pra ela estudar, pra não ficar que nem eu. Assim. Sem emprego fixo, limpando chão dosotro. Disse que não é justo. Que, se come, tem que pagar. Nunca deixei eles trabalhar de menor. O Jefferson, teimoso, me desobedece desde os 14, faz os bico dele por aqui. Não pego um tostão. Isso não aceito. E não deixo faltar nada. As vez em quando ele compra um danone, uma bolacha, tudo bem. Eu aceito. Coisa boa, eu gosto. 

Agora, vão dizer que não é meu filho? 

Baseado em que? Que lei é essa? Lei é pra quem tem dinheiro. Já viu quantos filhos tem a madama? E aquele apresentador de televisão? E as pessoas que têm 3 filhos gêmeos? Isso é tudo armação. Eles arruma isso daí. Não é possível. Gente rica, tem filho e nem precisa de barriga. Eles compram. Vem cá. Conheço até gente que já vendeu filho pra eles. Vi sim. E vem gente aqui pra contratar uma mãe de aluguel, não, barriga de aluguel que chama, né? 

É o que mais tem. Alguém foi preso por amar? Só pobre. É igual droga. Igual refrigerante. Igual baile funk. Tudo isso coisa do capeta. Pois é. E eu, que trabalho igual uma escrava pra criar minhas crias, sou acusada? É assim mesmo. Eu já inté acostumei. Aqui a gente é tudo safado pra essa gente. A gente é tudo bicho. Ninguém vê os saco de cimento que nóis carrega, o sofrimento da lotação. O resto de comida do lixo que nóis pegô do caminhão, não, isso não. Só esculhambação. Porra. Desculpa, Deus. É que às vezes não me seguro. Não tenho sangue de barata. 

Mexer comigo, tudo bem. Mexer com gente grande, tudo bem. Com meus meninos, não. Eles são tudo o que eu tenho. Crio esses meninos sozinha, Jefferson ainda é uma criança. Só tem 16 anos. Juliana, 18. O que eu vou fazer sem eles? 

Vão me acusar assim? Baseado em que? Se eu disser que achei esses menino no lixo? Quem pode dizer que é mentira? Se eu mostrar a certidão de nascimento? Registraram, sim, registraram no meu nome, quem é o culpado? E o dotô do cartório? A moça da vacinação? E as horas sem dormir? Quem é que me devolve? E o dinheiro dos remédios, do leite, da certidão, dos documentos tudo, e o cara que trouxe? Como é que eu fico? Isso não é justo. 

Se não fosse eu na vida desses meninos, onde eles estariam? Provavelmente no crime. Se a mãe teve coragem de jogar no lixo, imagina o que não faria. E sem essa de que a mãe não sabia, vão pegar teu filho onde? Vão roubar no hospital? Hoje em dia? Que isso. Faça mil favor. 

São meus filhos. Disso eu não abro mão. Se alguém quiser tacar pedra, pode tacar. Quem nunca errou?

Jurandir quer me arrumar até um advogado. Um desses de porta de cadeia. Disse que posso ser processada? Processada pelo que, meu Deus? Não creio, nisso. Creio em Deus pai todo poderoso. Só ele que pode me julgar. 

Agora achar criança no lixo é crime? Agora criar filho dos outros é crime? Agora é isso? Não foi assim que fui educada. Não é isso que prega a palavra de Deus. Se eu for presa e condenada, carregar nas costas essa acusação, quem vai ficar com os meninos? Devolver agora pra mãe? Isso é fácil. Os menino tudo criado. 

Os meninos são meus filhos. Eu que criei. Dei amor. Isso ninguém pode tirar. Isso não pode ser crime.

*Marcelo da Silva Antunes nasceu em São Paulo, no dia 13 de junho de 1992, dia de Santo Antônio e de Exu. É Autor de VIVAVACA (2017), SP: Sem Patuá (2018), Outros Cortes (2019), Manifesto da hora que o couro come (2020) e do livreto Velho, Velho Testamento (2019). Editor do selo literário Borboleta Azul, agitador cultural e oficineiro de escrita criativa. É poeta nas horas cheias.

Instagram: marcelodasilvaantunes_poeta

Facebook: Marcelo da Silva Antunes

 

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