O anônimo é uma mulher

Obra de arte de Miriam Schapiro feita com colagens de diversas cores, tamanhos e texturas. Lembando de um trabalho conhecido como patchwork.

por Ana Paula Girardi*


Quando pensamos sobre as artistas mulheres em meio aos estudos de história da arte, nos deparamos com uma primeira dificuldade: o desconhecimento de quem foram essas mulheres. Com algum esforço, conseguimos nomear algumas artistas no século XX, algumas pintoras e outras artistas dedicadas às artes têxteis e às artes aplicadas, mas, antes disso, pouco ou nenhum nome nos vem à mente.

Refletir criticamente sobre a marginalização das mulheres do campo artístico, o apagamento dos nomes das artistas dos manuais de história da arte e a consequente desvalorização das obras produzidas por mulheres é fundamental para combater ideias como: mulheres não produzem arte de qualidade, mulheres são “emocionais” demais e pouco racionais para produzir grandes obras, mulheres não se interessam por produzir arte, entre outras. Entender esse apagamento e desvalorização é compreender que eles se originam de injunções políticas de hierarquias socialmente construídas, e não de uma inclinação “natural” das mulheres para determinados campos artísticos, ou de falta de interesse e capacidade intelectual para produzir obras de arte.

Para compreender esse movimento1, é necessário recorrer ao autor das categorias fundamentais da história da arte, Giorgio Vasari (1511-1574), que, em sua análise, considerava a arte produzida na Idade Média, centrada principalmente nas tapeçarias e bordados, decadente, associada ao artesão, que era considerado um mero executor, em oposição à arte do Renascimento, em que o artista era visto como um indivíduo dotado de capacidades intelectuais e de um estilo próprio que o distinguia dos demais. A partir desse momento, as grandes artes eram aquelas fundamentadas no desenho, ou seja, a pintura, a escultura e a arquitetura.

A partir do século XVIII, com a criação das academias de arte, a diferenciação entre o artista e o artesão ganha força, e a habilidade técnica do desenho torna-se a espinha dorsal da formação do artista. Este é um momento chave para compreender a desvalorização das obras de arte produzidas por mulheres, assim como as dificuldades que as artistas mulheres enfrentavam para produzir.

Ao longo dos séculos XVIII e XIX, a presença das mulheres nas academias de arte era pouco aceita e, nas instituições que contrariavam essa lógica, as mulheres não frequentavam as aulas de modelo vivo por pudor. Dessa forma, as mulheres estavam apartadas do ensino formal de arte, e muitas delas recorriam aos ateliês particulares para estudar, não desenvolvendo plenamente, portanto, o desenho. As artistas que conseguiam transpor as barreiras institucionais se dedicavam às aquarelas, às pinturas decorativas, às naturezas-mortas, às tapeçarias e aos bordados, por exemplo, todos considerados gêneros menores na hierarquia dos gêneros artísticos.

Apartadas do ensino formal e institucional, encontrando outras formas de estudos, algumas artistas mulheres não apenas se desenvolviam artisticamente, como também expunham suas obras nos salões de arte, ganhando, inclusive, premiações. Ainda assim os nomes dessas mulheres aparecem apagados dos manuais de história da arte. A Prof. Dr.ª Ana Paula Cavalcanti Simioni em seu livro Profissão artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras, nos mostra como o uso da categoria “amador” representava as mulheres que expunham nos salões de belas artes no Brasil no século XIX. Havia três termos que classificavam os autores das obras de arte ali expostas: artistas, ou seja, os homens formados pela academia; alunos, os inscritos na escola oficial; e amadores que, apesar do termo no masculino e plural, era, na prática, a categoria reservada para as artistas mulheres que expunham.

Consideradas amadoras, impedidas de frequentar as academias de arte ou as aulas de modelo vivo, em sua maior parte as artistas mulheres tinham seu campo de atuação reduzido às artes aplicadas e às artes têxteis, consideradas artes “menores” e associadas ao artesanato e ao artesão – aquela figura desvalorizada, vista como meramente executora e desprovida de capacidade intelectual. Temos, então, a gênese da desvalorização das artes aplicadas e das artes têxteis: artistas mulheres impossibilitadas de produzir gêneros maiores produzem gêneros considerados menores que, antes vinculados ao artesão, passam também a ser associados ao trabalho feminino, socialmente desvalorizado e desqualificado.

Carteira de estudante da Bauhaus de Gunta Stölzl, com fotografia, assinatura e o carimbo da instituição. A palavra estudante está riscada e acima está escrito a mão professor.

Se até o século XIX observamos a separação e a distinção entre arte e artesanato, e a valorização de um em relação ao outro, o século XX não altera profundamente a ordem das coisas. Apesar de sua curta existência de 14 anos, a Bauhaus foi uma escola de arte, e um importante fenômeno cultural da história do design, em que seu idealizador Walter Gropius (1883-1969) acreditava na cooperação entre artista e artesão, de modo a eliminar a barreira existente entre essas categorias. O que prometia ser uma igualdade na escolha profissional, uma cooperação sem distinção de classe, na prática se mostrava contraditório. Após passarem pelo curso preparatório, as mulheres eram enviadas para as oficinas de tecelagem (a única em que uma mulher, Gunta Stölzl ((1897-1983), era a mestre), encadernação (fechada em 1922) ou cerâmica (fechada em 1923). As mulheres não eram aceitas na oficina de arquitetura, por exemplo.

As mulheres da Bauhaus que eram pintoras e desejavam cursar outras disciplinas enfrentavam um ambiente hostil por estarem inscritas na oficina de tecelagem. Em uma época em que a educação para as mulheres não era a norma, as estudantes que entravam na escola ainda assim eram mulheres que possuíam escolaridade prévia, e ali continuavam a enfrentar barreiras para se desenvolver enquanto pintoras, escultoras ou arquitetas.

Para além dessa construção de valores das categorias e hierarquias de gênero na história da arte, na cultura popular os variados tipos de bordado são vistos como passatempo feminino, não sendo associados a um fazer artístico e nem tendo uma linguagem artística reconhecida; são considerados meros objetos decorativos. Na década de 1970, a artista canadense Miriam Schapiro (1923-2015) produziu uma série de colagens intituladas “anonymous was a woman” em que se utilizava de pequenos bordados, guardanapos e toalhas para compor sua obra. Esses objetos desvalorizados, associados ao uso doméstico e ao feminino ressurgiram em sua obra, denunciando não apenas essa desvalorização como também o anonimato dos trabalhos produzidos por mulheres.

Uma tela de Mirian Schapiro, que se chama Agonia no Jardim. Ao centro, uma reprodução de um famoso autorretrato pintado por Frida Khalo, em que ela se retrata com busto aberto e no centro dele com uma estrutura metálica que o atravessa do quadril ao pescoço. O busto está envolvido com várias bandagens, mas estas deixam transparecer os seios e a estrutura metálica. Atrás do busto, há folhagens em tons de verde que formam um quadrado. Atrás desse quadrado há formas diversas em tons quentes, formando um retângulo.
Miriam Schapiro (1923-2015). Agony in the Garden, 1991. Acrylic on canvas with glitter, 90 3/16 x 72 3/16 x 2 in. (229.1 x 183.4 x 5.1 cm). Brooklyn Museum, Purchase gift of Harry Kahn, 1991.112. © artist or artist’s estate (Photo: Brooklyn Museum, 1991.112_SL1.jpg)

Schapiro se inseriu em um movimento de contestação à ausência feminina nos meios acadêmicos, mercadológicos e na produção artística e, ao lado de Judy Chicago (1939-), criou o Feminist Art Program, no California Institute of Art, inserindo e desenvolvendo um pensamento feminista dentro da academia americana. Nas décadas seguintes, as artes têxteis, principalmente o bordado, começaram a figurar nas práticas artísticas contemporâneas que exploram esse efeito provocador.

Se há uma dificuldade em se reconhecer grandes artistas mulheres antes do século XX, isso não representa uma incapacidade do gênero feminino de produzir grandes obras, mas, sim, um reflexo da ausência arbitrária das mulheres do ensino formal, impossibilitando tantas potenciais grandes artistas de existirem, e a desvalorização dos campos artísticos predominantemente femininos. Amadoras, anônimas, quando muito figurando na história da arte ao lado de seus pares amorosos, as artistas mulheres que lograram algum êxito foram sistematicamente apagadas da história, e suas obras, muitas vezes, se perderam.

*Ana Paula Girardi é graduada em Letras pela Universidade de São Paulo e editora de material didático. E-mail: anapaulacgirardi@gmail.com

Foto de capa: Miriam Schapiro (1923-2015). Anonymous was a Woman, 1976. Acrylic and collage on paper, 30 x 22 in. (76.2 x 55.9 cm). Brooklyn Museum, Gift of Amy Wolf and John Hatfield in memory of Cynthia Africano, 2005.61. © artist or artist’s estate (Photo: Brooklyn Museum, 2005.61_PS1.jpg).

  1. SIMIONI, A. P. C. Bordado e transgressão: questões de gênero na arte de Rosana Paulino e Rosana Palazyan. Revista Proa, v. 1, n. 2, 2010. Disponível em:<http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/proa/article/viewFile/2375/1777>. Acesso em: 3 mai. 2017.

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