O poder de representações femininas de impacto

Foto de céu com nuvens espessas, em tom arroxeado, com gaivota de asas abertas na parte central, voando livremente.
Foto: Mario Luengo via br.freepik.com.

por Lia Nahomi Kajiki*

Uma das minhas memórias mais antigas e vívidas da infância é das tardes em que eu passava horas a fio conversando com o Leo. Era quase um ritual: eu retornava da escola, almoçava e corria para lhe contar todas as novidades. Leo não era uma criança, mas um passarinho criado em gaiola. Ter pássaros engaiolados era corriqueiro na cidade onde cresci, uma cultura que, felizmente, não se perpetuou na minha família e se torna cada vez mais incomum entre os brasileiros. Eu gostava de pensar que, quando pegava o apito de madeira do meu pai e passava horas assoviando com Leo, nós conversávamos. Um olhar mais objetivo talvez revelaria que o passarinho na verdade cantasse por estresse, talvez em resposta às minhas tentativas de imitá-lo. Hoje, como bióloga e ornitóloga, sou inclinada a pensar que essa última opção talvez fosse a mais provável. Porém, mesmo com mais de 10 anos de experiência no estudo das aves, ainda me sinto como aquela garotinha tentando conversar e entender o que os pássaros têm a nos dizer sobre a incrível biodiversidade que nos ronda.

Durante esse tempo, minha caminhada profissional foi permeada de oportunidades únicas e memoráveis. Viajei e trabalhei como consultora ambiental e pesquisadora pelos Sertões de Guimarães Rosa, pelas florestas úmidas amazônicas com seus Angelins de mais de 70 metros de altura, pelos últimos fragmentos florestais da nossa querida e tão ameaçada Mata Atlântica, pelos lindos campos de Cerrado do Planalto Central brasileiro. Fiquei cara-a-cara com ariranhas, passei noites acampada no meio da Amazônia paraense só com uma fogueira e alguns mantimentos, torcendo para a onça não nos visitar no meio da noite. Eu lembro dessas noites na beira do Rio Xingu, de um escuro infinito (não sei se é possível, mas foram as noites mais escuras que já presenciei), em que o silêncio não tinha vez e era preenchido pelas dezenas de sons de anfíbios, insetos, e pelo incansável farfalhar das imensas copas que cobriam nossas redes de dormir. Lembro da vez que me perdi nessa floresta, e do medo – o que fazer quando se perde na Amazônia? Uma vez, durante um estudo em Minas Gerais, caí e escorreguei do lado de uma cascavel que, para minha extrema sorte, apenas descansava sob uma fresta de sol numa manhã fria.

Essa coleção de histórias e aventuras soariam impossíveis para aquela garotinha que conversava com passarinhos. Isso porque durante toda minha infância fui levada a acreditar pelo meu corpo que esse tipo de vida não era para mim. Complicações de saúde, como uma bronquite quase crônica e alergias diversas, quase diariamente me lembravam das minhas limitações. Some a isso pitadas de micro-agressões nos tempos de escola, relacionados principalmente aos meus traços asiáticos. Esses eventos por muito tempo me fizeram negar a ancestralidade nipônica, e meu maior desejo era me camuflar e mesclar entre os outros, me tornar invisível. Afinal, aprendíamos que o diferente era sinônimo de esquisito. Insegurança, medo, timidez, falta de identidade – um caldeirão tenebroso. Nessas horas, voltamos o olhar para o exterior, porque olhar para si é muito doloroso, e agarrei a única mão que poderia me mostrar um caminho diferente: a da minha mãe.

Soa um tanto clichê, mas a inspiração em minha mãe não podia ser mais óbvia: era impossível não me ver nela e vice-versa. Nascida de pais descendentes de imigrantes japoneses, graduou-se em Biologia e Farmácia – num tempo em que ter um diploma universitário era realmente muito difícil – e foi a primeira na família a obter um Doutorado. Ainda sinto o frio nas minhas canelas finas de menina no Pico da Neblina em Itatiaia na época em que ela nos levava para ajudá-la a coletar as amostras para sua tese. Eu mal sabia que ali nascia a bióloga de campo que eu me tornaria 10 anos depois. Ser biólogo não era considerado uma profissão “de verdade”, mas quando eu decidi pela Biologia, minha mãe acenou: “é a profissão do futuro”. Um olhar um tanto visionário, pois foram e são tantas as mudanças e impactos que causamos nos ecossistemas, que o mundo nunca precisou tanto de biólogos como recentemente. Para além do apoio e de criar um ambiente onde eu pudesse alcançar e desenvolver minhas habilidades, ela me mostrou o poder da generosidade, da empatia e da resiliência como cientista. Para mim, é a representação mais potente de mulher cientista.

Essa história reflete como o poder da conexão e representatividade são gigantescos. Naquela época minha mãe era a única cientista e exploradora nipônica com a qual eu tive contato. Mesmo que a cultura japonesa tenha se adaptado e integrado bem com a cultura brasileira, a visibilidade de nipo-brasileiras na Ciência normalmente se limitava às áreas da Saúde ou da Biologia Molecular. Então, poder ver e compartilhar experiências desde cedo com minha mãe em campo, abriu um grande leque de possibilidades antes inimagináveis. Eu não somente me identificava com essa figura de cientista representada por ela, mas fui atravessada cotidianamente pela paixão e pelo vislumbre que ela tinha com seu trabalho.

Ampliar a visibilidade de mulheres cientistas é extremamente importante, mas não é o suficiente. Eu me recordo que durante a graduação ouvi, por exemplo, sobre Rachel Carson e Rosalind Franklin. Foram mulheres cientistas pioneiras e de importantes contribuições em suas áreas de atuação, mas de histórias e realidades de pouca familiaridade com a minha, ou com as múltiplas realidades de garotas latino-americanas. Se queremos ampliar a diversidade de mulheres cientistas, primeiro precisamos cultivar o “querer ser cientista”. Assim, para além de amplificarmos a voz e dar visibilidade às mulheres na Ciência, cultivemos uma cultura de conexões reais e inspirações femininas. Que a mulher cientista esteja nas escolas, nos lares, nas comunidades, no nosso dia-a-dia. Que ela não seja apenas uma representação, mas alguém ao alcance!

*Lia N. Kajiki é bióloga, exploradora pela National Geographic e doutoranda em Ecologia na Universidade de Brasília.

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