Objetividade científica e o ponto de vista feminista

Foto de uma professora de costas, de longos cabelos encaracolados, em pé, em contraluz, escrevendo fórmulas matemáticas em uma lousa branca.
Foto: ThisIsEngineering no Pexels

por Fabiana Sanches Grecco[1]*

A ciência não é definitiva. Ela é contestável. É esse princípio que a estrutura, fundamentalmente. É isso que a permite existir enquanto tal. É com base nisso que avanços são oferecidos ao campo social.

A ciência não é neutra. Ela é parte da sociedade. Está em uma relação dialética com ela. Ao mesmo tempo em que a impacta, expressa e depende dos interesses dessa sociedade para existir. Quem a faz – onde e sob quais condições a faz – influencia seu desenvolvimento. O que é realizável na ciência institucionalizada, é atravessada por múltiplas relações de poder – conflituosas e que representam interesses antagônicos –, incluindo as relações sociais de gênero.

Assim, ao ser desenvolvida predominantemente por homens – em quase a totalidade das áreas de conhecimento – é possível afirmar que a ciência alcança as experiências de vida das mulheres? Pelo contrário, desigualdades de gênero foram construídas na produção e estrutura do conhecimento.

Um exemplo é chocante: apenas em 1998 o clitóris foi descrito com todos os seus elementos a anatomia completa, por Helen O’Connell. Esse desconhecimento postergou, por exemplo, o desenvolvimento da saúde sexual e reprodutiva das mulheres – física e psicológica. É o interesse ou falta de interesse científico, que viabiliza o controle e o domínio dos corpos.

Outro exemplo é revoltante: desde a década de 1970, a teoria feminista confronta a economia por ignorar e desvalorizar os trabalhos domésticos e de cuidados. Intelectuais do mundo todo elaboram uma série de ferramentas teórico-metodológicas nessa direção, possibilitando uma leitura mais ampla e complexa da sociedade, mas até os dias de hoje há resistência em sua incorporação.

O avanço científico de Helen O’Connell é fruto do espaço nas instituições científicas que as mulheres conquistaram desde a década de 1970. Sua entrada massiva na ciência (ainda que permaneçam poucas em muitas áreas do conhecimento) tende a confrontá-la e provocar sua reconstrução. É dessa década em diante que a relação entre ciência e gênero começou a ser, de fato, debatida. É isso que, segundo Llana Löwy (2009 [2000]), possibilitou a afirmação definitiva de que a ciência, sendo um trabalho coletivo dos seres humanos, não pode ser dissociada do tempo e do espaço. É o que deu origem à reflexão sobre em que medida o gênero estrutura o conhecimento e sobre a possibilidade de se fazer uma ciência feminista (que assume um ponto de vista político), inclusive, mais objetiva.

Duas autoras são fundamentais nessas proposições. Sandra Harding (1995) afirmou que o ponto de vista feminista não é apenas uma perspectiva. Para ela, fazer ciência feminista significa fortalecer os padrões da objetividade científica para alcançar a maior precisão e abrangência, alcançando uma “objetividade forte”. Isto é, o ponto de vista supostamente neutro tende a ocultar o fato de que seus desenvolvimentos favorecem determinados grupos sociais, em detrimento de outros. Isso torna sua objetividade fraca. Uma objetividade forte tem, ao contrário, seu ponto de vista, interesse e finalidades manifestos. Seus critérios científicos são, portanto, mais bem delimitados.

Donna Haraway (1995 [1988]) nos lembra que afirmar um ponto de vista não significa afirmar uma identidade, mas posicionamentos críticos, objetivos e responsáveis – elaborados e validados coletivamente. Isto é, “uma política de posicionamentos”. A responsabilidade é, para essa autora, o ponto chave de posicionar-se no fazer científico. Expor a localização do ponto de vista é mostrar-se como responsável pelo conhecimento que produz, e não se esconder atrás de uma falsa neutralidade.

Referências

LÖWY, Llana (2009 [2000]). “Ciências e gênero”. In: HIRATA, Helena. et al. (orgs.). “Dicionário crítico do feminismo”. São Paulo: Editora UNESP, 2009 [2000].

HARDING, Sandra (1995). “Can feminist thought make economics more objective?”. Feminist Economics, 1:1, 7-32, 1995.

HARAWAY, Donna (1995 [1988]). “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, (5), 7-41.

*Fabiana Sanches Grecco é socióloga e cientista política. Pesquisa os temas: Trabalho (invisível, não pago e informal), Divisão Sexual do Trabalho e Neoliberalismo. Realizou doutorado em Ciência Política (Unicamp) com um período de formação no grupo Gênero, Trabalho e Mobilidade (GTM) do Centro de Pesquisas Sociológicas e Políticas de Paris (Cresppa/CNRS), e mestrado, bacharelado e licenciatura em Ciências Sociais (Unesp/Campus Marília).

[1] As reflexões aqui trazidas foram encaminhadas de maneira mais abrangente no livro “Reprodução Social: uma análise da economia feminista”, que tem previsão de lançamento, pela Editora Gota, para o primeiro semestre de 2022.

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