Pra que falar?

Foto: ©Jordan McDonald on Unsplash

por Jessica W. Olivieri*


Meu irmão mais novo é gay. Nunca falamos disso, mas esse é o tipo de coisa que não se fala, se percebe: quando ele pedia para trocar meus Legos laranjas e vermelhos pelos verdes e azuis dele; quando, muito antes de fazer sucesso ou sentido, ele já era, há anos, superfã da Beyoncé; quando, um dia, cheguei em casa e a minha bola de futebol surrada foi lavada com shampoo, decorada com um rostinho feito com o batom da mamãe e, agora, desfilava o cabelo recém tosado – e grudado com cola Pritt – do meu boneco do He-Man.

Pois é, não tinha pra que falar.

Mesmo quando ele ficou internado um tempo, não adiantava levar meu álbum de figurinhas da Copa de 94, nem falar do Corinthians ou de videogame; é… naquela época eu não soube agradar.

Ele era meu parceiro. Escolhia minhas roupas quando eu ia sair com alguma garota, falava quando meu cabelo tava ridículo e precisava cortar, dava os melhores conselhos sobre mulher e escrevia as melhores cartas pras minhas namoradas. Sempre me preocupei demais com ele; sei lá… a infância do meu irmão foi barra.

Hoje acordei com uma mensagem dele dizendo que precisávamos conversar (escrito e acentuado assim mesmo). Na sequência, outra mensagem estranhamente formal: vamos combinar um jantar? Caralho.

Ele só pode estar doente.

Li esses dias que gays têm 70% (ou será que era 17%?) de chance de contrair doenças venéreas. Sem falar em AIDS. Meu Deus, será que ele tá com AIDS? Não, não deve ser. Tomara que seja só uma clamídia leve ou sífilis. Sífilis é coisa de puta medieval, será que ele pegou isso? Porra, Fernando! Por que não usa camisinha, moleque? Imagina se for aquelas doenças que explodem umas coisas no pau? Tipo molusco contagioso – assim que recebi as mensagens, me afundei na pesquisa do Google – ou microlitíase testicular, orquiepididimite aguda, balanite, balanopostite, puta merda. Dei conta que eu tava viajando quando entrei para ver imagens! Você já viu uma foto de um condiloma acuminado? Fêzinho do céu, te desejo tudo menos isso.

Não deve ser grave. A gente se encontrou no dia dos pais, há menos de 2 semanas, e ele parecia bem (pesquisar doenças com tempo de incubação de 2 semanas). É que se fosse uma doença normal, ele já teria me contado por mensagem. Esse é o problema. Se fosse zika, dengue, essas doenças de brasileiro sofredor, asma, bronquite – o tempo tá bem seco aqui –, colesterol, triglicérides, ele já teria falado. Virose, piriri, diarreia explosiva, teria me ligado na hora; ele sabe o quanto eu curto falar de merda. Não sei por que essa história me deixou tão nervoso. Eu mesmo tava quase tendo um derrame ou um acidente vascular cerebral (pega esse significado de AVC que aprendi mais cedo).

Respondi dizendo que claro que poderíamos jantar, onde ele gostaria? Imediatamente respondeu que poderia ser em qualquer restaurante em que não correríamos o risco de encontrar nosso pai. Pai do céu.

É fato: é doença.

Ele lembra quão preocupado o velho ficou quando ele adoeceu. Será que é o câncer de novo? Como eu sou burro! Como não pensei nisso antes? Faz mais de 7 anos que falaram que tava em remissão completa e que quando passa alguns anos sem voltar, tá curado. Não, não pode ser isso, ele tá curado. Não é isso. Eu tenho certeza.

Lembro que uns meses atrás zoei de um espacinho careca na cabeça dele e, tô olhando aqui, pode ser uma doença autoimune. Será? Lúpus! Ou aquela doença que virou moda o povo jogar um balde de água na cabeça? Ou aquela que o Michael J. Fox tem, que dá tremedeira? Ou a doença que aquela velha, que jovem era a gata da Rachel McAdams, tem, que fazia ela esquecer tudo o que o marido estava contando sobre a vida deles dois? Alzheimer, acho. Não é, devo estar exagerando – o Fernando não tá num filme de Hollywood.

Ninguém pega essas coisas na vida real. Quero dizer, “Deus, por favor, não tenha dado uma doença dessas para ele”. Coitado, ele já viveu sua cota de enfermidade.

Cada nome de doença bizarra, escuta só: Tireoide de Hashimoto, Síndrome de Sjögren, Granulomatose de Wegener, Doença de Graves – essa é bem grave –, Síndrome de Churg-Strauss, Púrpura Trombocitopênica Idiopática, tá louco.

Espero que não seja nada, mas porque raios ele precisa conversar ao vivo? Marquei o jantar para essa noite mesmo, pois certamente faleceria de espondilite anquilosante se eu não descobrisse que cacete tava acontecendo com meu irmão.

Tinha umas três coisas para fazer durante o dia, mas não rolou me concentrar mais de 15 minutos em nada que não fosse “Causas, Sintomas e Tratamentos” da infinidade de mazelas que pesquisei para me preparar para o jantar. Seria essa minha estratégia: qualquer doença que ele falasse, eu já teria lido um pouco, visto fotos, me preparado para fingir que é algo totalmente natural, tratável e bola para frente. “What would Beyoncé do?”, eu falaria, caso ele se mostrasse emotivo ou desanimado com o tratamento invasivo que os médicos recomendavam.

Nem lembro se tomei banho ou se só troquei de roupa, mas cheguei no restaurante 40 minutos antes da hora que combinamos. Sentei no bar, bebendo cachaça e esperando o pior.

Ele chegou.

Tava corado, isso excluía vitiligo, anemia, pressão baixa. Tava acordado, não era narcolepsia. Chegou falando boa noite para o garçom, removendo qualquer risco de danos às cordas vocais e garganta.

Parecia estar bem.

Sentamos numa mesa e ele desembestou a falar de amenidades, política, notícias no geral. Sorte que eu também estava acompanhando a política no jornal, se não, acharia que as histórias que ele mencionou eram fruto de psicose, demência, retardo – mas não, tudo certo, era a realidade mesmo. Com isso, não consegui diagnosticar nenhum problema psiquiátrico ou neurológico.

— Fernando, pelo amor de Deus, será que você pode falar logo porque você quis jantar? O que tá acontecendo com você?

— Mano, tenho que te contar um negócio foda. – Ai, porra, é foda. Então não é nenhuma das fáceis, tipo alergia ou caxumba. Que nem eu havia imaginado! Claro, se fosse, ele teria me contado por telefone.

— Conta!

— Isso é complicado de falar, eu tô meio sem graça. – Sabia! A primeira intuição tá sempre certa! É alguma venérea. Toma que não seja HIV, tomara que não seja HIV, tomara que não seja HIV.

— Fica tranquilo, pode contar.

— Faz anos que eu penso em como te contar… em como falar disso com você… – Anos? Puta que pariu! Deve ser alguma autoimune, então. Que evolui devagarzinho e agora os sintomas estão aparecendo. Ele tá tremendo? Será Parkinson?

— Fê, esse suspense tá me deixando aflito. Só fala logo!

— Você já sabe? – Ele deve ter sacado que eu vi a mão dele tremer. Caramba, meu irmão tá com uma doença degenerativa? Não creio!

— Acho que sim, quer dizer… não sei exatamente, mas sei, acho que sei.

— Você quer que eu fale, então? – Quê?

— Você quer que eu chute? Não tô entendendo. – Ele riu.

— É que facilitaria minha vida se você falasse…

— Fernando, fala agora!

E, então, falamos ao mesmo tempo:

— Você tem Parkinson?

— Eu sou gay.

 *Jessica W. Olivieri (São Paulo, 1989) escreve nas poucas horas vagas e publica seus escritos no site <https://derkaffeeklatsch.com>.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *