Teoria da comunicação

Imagem de fundo preto com uma fumaça branco azulada que sai do meio da parte debaixo para cima da foto. A forma da fumaça lembra um cogumelo.
Foto: by Nihal Demirci on Unsplash

por Anderson Antonangelo*

Estava quase à beira da porta de vidro que separava a rua da academia, quando sentiu um puxão em seu ombro esquerdo. Tirou os fones do ouvido, um pouco irritada, enquanto a recepcionista gesticulava à sua frente: 

— Moça, olha, você esqueceu o boleto desse mês! 

Pegou o boleto apressada e meteu-o na bolsa. Quem é que usava boletos hoje em dia? Virou as costas e colocou novamente os fones. Ouvia uma banda qualquer de indie rock

O caminho de casa pela marginal era praticamente intrafegável. Andava alguns metros, parava por um minuto. Repetindo o processo algumas centenas de vezes, estaria em casa. Já havia se acostumado, e encontrava nisso até algum conforto. Já havia planejado a playlist do trânsito. Deixava-a tocando alto, e com o vidro reforçado, o carro blindado e o ar condicionado, não precisava ter preocupação alguma. Tinha algumas barrinhas de cereal no porta-luvas. Sentia-se tão relaxada que se permitia fechar os olhos e dar um profundo suspiro, naqueles segundos em que o carro ficava inerte sobre a infinita pista de asfalto. 

No carro parado ao lado, um moleque bate no vidro e fala qualquer coisa. O casal sentado não move o pescoço, mantendo o tedioso semblante olhando para a frente. A criança atrás tem fones no ouvido e olha para baixo. Deve ser um tablet. O moleque continua andando entre os carros parados para tentar falar com o próximo motorista. No carro, o casal continua olhando para a frente em silêncio. A criança continua com a cabeça abaixada. O trânsito se desloca por mais 7 metros. 

Já em casa, deixou a bolsa na cadeira, e colocou a marmita low carb para esquentar enquanto foi tomar uma ducha quente. Ligou o som alto enquanto foi ao chuveiro. Ouvia uma banda qualquer de post rock

Enquanto comia a massa de abobrinha que simulava spaghetti com um molho de tomate orgânico, ao computador, já organizava os arquivos que precisava rever. Tinha de terminar um relatório e uma apresentação para o treinamento, era isso. Mas se tivesse tempo, iria se organizar para também adiantar algumas planilhas bimestrais de prospecção. Aquela playlist realmente ajudava na concentração. 

Quando o interfone toca pela primeira vez, ela nem percebe, fosse pelo som alto, fosse pelo arrebatamento ante o funcionamento lógico das planilhas. Com a insistência do porteiro, finalmente ela ouve e se levanta indignada para atender. Quem é que interfonava hoje em dia? 

— Boa noite, seo Álvaro tá aqui embaixo! 

— Que Álvaro? 

— (……….) Olha, disse que é seu irmão. 

O irmão? Que diabos ele fazia ali? Já não se falavam havia sete anos. E nem queriam mesmo se falar, nem se ver, nem saber um do outro. Havia sete anos que se odiavam. Moravam a 900 km de distância, o que ainda era pouco. Que diabos ele fazia ali? 

— Alô, dona? Eu deixo ele entrar? 

— (….) Não… não! Tô descendo. 

O caminho dos treze andares abaixo foi um grande caos de cólera e incompreensão absoluta. Não fazia sentido nenhum aquela visita. Desceu no térreo e recebeu um mecânico boa noite da vizinha do décimo. Aparentemente, nem a ouviu. 

Encontrou o irmão parado à porta do condomínio. Ele portava uma expressão carregada, sisuda, os olhos avermelhados. Antes que ela pudesse sequer começar a falar, Álvaro lhe estendeu um envelope. 

Mas o que é isso? 

É do Valtinho. Pega. 

Ah mas como assim que… 

Só pega. Escreveu uma pra mim e outra pra você. Depois você pergunta o que quiser. 

A cabeça estava atordoada, não assimilava o fato. A visita absolutamente inesperada do irmão, uma carta do sobrinho. A situação insólita começava a lhe causar algum sinal de dor de cabeça. 

Lê a carta. Estou na cidade até amanhã à noite. Se quiser falar comigo, esse é meu número. 

Entregou um cartão à irmã, virou as costas, entrou no táxi parado à frente do portão e foi embora. 

Ela sentiu tonturas. Sentou um pouco nas escadas da entrada do condomínio, olhou a carta do sobrinho na mão. O porteiro a veio socorrer. 

— Dona, tá tudo bem? Precisa chamar ajuda? 

Ela se levantou com pressa, virou às costas e foi rumo ao elevador. 

“Tia Eugênia, 

Que saudades! 

Lembro sempre daquele verão em Petrópolis, lembra? Foram os melhores dias! 

Queria pedir desculpa por não falar com você nesses últimos anos… mas o pai não me deixou. Eu queria muito pelo menos ligar, mas não deu mesmo. Mas eu te acompanho no insta com uma conta falsa, tia (desculpa! rs), e vi que você cortou o cabelo, ficou super bonita! Vi também que viajou pra França tia, que demais! Sempre quis conhecer a França! 

Tia, eu tô escrevendo essa carta porque o pai prometeu que ia entregar. Eu confiei nele, então você deve estar lendo, eu acho. 

Tia, o pai vem chorando muito nos últimos tempos, e sei que é por minha causa… eu entendo. Eu tentei acalmar ele, ele passou muito tempo comigo, foi bom, mas ele só chora. Mas a verdade é que mesmo antes da minha doença, ele não sorria fazia muito tempo, já. E eu acho que é por causa da briga de vocês, depois do acidente da vó. Ele era tão alegre, você lembra, tia? Não vejo o sorriso do pai, ou ele fazendo piadas, há tanto tempo, e fico triste. 

Tia, eu tenho medo de que quando eu for embora, o pai não vai mais sorrir. A mãe não sabe o que fazer, e eu tenho medo, tia… por isso, eu escrevi pra você. Eu queria mesmo, muito, que vocês conversassem. Por favor, tia. 

Eu te amo, tia, não esquece disso! 

 

Valtinho” 

As mãos trêmulas, a cabeça doendo, o pescoço travado, um som agudo e alto nos tímpanos, as palavras mortas. O sobrinho morto. Achou na mesa o telefone do irmão, começou a discar, mas parou, não podia. Esmurrou a própria coxa, chorou de raiva. 

Tentou discar de novo e não pode. Gritou, gritou um grito que era a expressão seca do desprezo que sentia pelo seu próprio vazio. Amassou o papel com o telefone e jogou longe. O sobrinho falou das redes sociais. Custou a lembrar o sobrenome inteiro do Valtinho naquele estado de nervos. Encontrou sua página no Facebook. 

Valtinho tinha escrito havia cinco meses sobre sua condição, pedia para os amigos ficarem calmos que estaria sob tratamento. Leucemia mieloide aguda. As postagens de luto dos amigos, as mensagens de pêsames, datavam de quase três meses. Quase três meses e o maldito do irmão não havia falado da morte do sobrinho? 

Quase três meses e ela nem sabia que o Valtinho havia partido? 

Quase sete anos, sete anos, e ela não falava com seu afilhado? Que não via o filho de seu irmão? Quase sete anos… como podia o sobrinho ainda ser gentil? 

Quis gritar, quis cortar o pulso com um cutelo, quis esfaquear a própria perna, quis pular do décimo terceiro andar. Caiu no chão, encolhida, chorando todas as lágrimas que pensava não existirem, num corpo que parecia delas já drenado. 

O irmão a esperava numa mesa no lobby do hotel. Mexia a colher na xícara de chá, os olhos perdidos em algum ponto desconectado da materialidade ao redor. 

Aproximou-se de sua mesa e teve vontade de berrar sete anos de dores e supressão em sua cara, de chamá-lo de assassino. Mas não o fez. O irmão levantou, com os olhos marejados, com olheiras encovadas, e a abraçou. Ela aceitou o abraço. 

Antes de proferirem a primeira palavra, o silêncio que os dois partilhavam durou muitos minutos. Não era a ausência da palavra; mas a presença do silêncio. Era ali, num vasto campo quebradiço e arenoso, praticamente infértil, num pasto vazio e moribundo, que, silenciosamente, brotou um ínfimo e lodoso fio de água. 

*Anderson Antonangelo é graduado em Jornalismo e Letras pela Universidade de São Paulo. É poeta e professor, e atualmente cursa mestrado em Teoria Literária, na Universidade do Minho, em Braga. É autor de Fantasmagorias, publicado pela Editora Gota, e três vezes finalista em poesia na FLIP.

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