Minha casa é o mar – Alfonsina Storni e a sua busca por espaço

Mulher branca de cabelo claro com colar de pérolas


por Sarita Borelli*


Certo dia, em minhas andanças pós-acadêmicas pela literatura latino-americana – é bom reprisar o fato de que a academia pouco me aproximou de escritoras incríveis que conheci posteriormente –, deparei-me com Alfonsina Stoni (1892-1938) em versos que diziam:

 

Tú me quieres alba,

Me quieres de espumas,

Me quieres de nácar.

Que sea azucena

Sobre todas, casta.

De perfume tenue.

Corola cerrada.

Ni un rayo de luna

Filtrado me haya.

Ni una margarita

Se diga mi hermana.

Tú me quieres nívea,

Tú me quieres blanca,

Tú me quieres alba.

[…]

 

Tais versos chamaram minha atenção, mas os reservei para outro momento; e não encontrei momento melhor do que este em que escrevo para refletir sobre a autora Alfonsina Storni.

Em tempos de retorno de discursos moralistas e catequizadores, principalmente para as mulheres, e a tentativa de suspensão de avanços jurídicos obtidos até aqui, talvez seja um exercício interessante conhecer uma autora que esteve na contramão de seu tempo e com uma trajetória que tem muito a dizer.

Filha de imigrantes suíços que se estabeleceram na Argentina, Alfonsina teve um filho com um homem casado em 1912, com 20 anos de idade. Por seu único filho, deu início a sua história de luta, brigando legalmente pela igualdade de direitos entre descendentes legítimos e ilegítimos e pela responsabilidade dos progenitores.

Mãe sola e pobre, mudou-se para Buenos Aires com a intenção de ser atriz e escritora, tendo que enfrentar, a princípio, os preconceitos sociais que levavam a crer que uma mulher como ela acabaria na prostituição. Mais uma vez, a intolerância da presença feminina em alguns espaços gerou uma força contrária de resistência. Assim, com inteligência e desenvoltura, passou a frequentar os círculos intelectuais da cidade e, desde então, a ser reconhecida como poetisa.

É válido mencionar que Alfonsina participava do circuito literário desde 1912, ano que deu início a sua colaboração em prosa a periódicos locais. Mas, infelizmente, eram poucas mulheres que podiam ser reconhecidas por sua prosa. Pode ser por isso que, em algum momento de sua colaboração a periódicos, adotou o pseudônimo masculino Tao Lao.

Enquanto os homens liam jornais que tratavam de assuntos “sérios”, como economia e política, as revistas para as mulheres traziam os últimos modelos de vestidos, dicas sobre economia doméstica e como se portar na sociedade. Nesse meio, desenvolveram-se os textos de Alfonsina, como este que saiu na revista La nota (publicação semanal impressa entre os anos de 1915 e 1912 em Buenos Aires):

 

Um livro queimado, 27 de junho de 1919

A palavra feminista, “tão feia”, que ainda hoje faz cosquinhas nas almas humanas. Quando dizem “feminista”, para algumas, se assoma sobre a palavra uma cara com dentes ásperos e uma voz vibrante.

No entanto, não há uma mulher normal em nossos dias que não seja mais ou menos feminista.

Pode ser que não deseje participar na luta política, mas – desde o momento que pensa e discute em voz alta as vantagens ou os erros do feminismo – já é feminista, pois o feminismo é o exercício do pensamento da mulher, em qualquer campo de atividade. […] (tradução da autora)

 

Como autora, Alfonsina usou as próprias revistas destinadas ao público feminino para fazer críticas aos padrões comportamentais da sociedade em que vivia.

Também é válido mencionar que, de todas as profissões que exerceu, a que mais recordariam seria a de que havia sido maestra. Afinal, o exercício da docência era considerado uma extensão da atividade doméstica. Havia poucas profissões que as mulheres podiam exercer e todas elas com remunerações menores do que as ofertadas aos homens.

―É claro, não devemos ser anacrônicos, não é mesmo?

Tanto em sua prosa quanto em seus versos, a sua voz emanava discordância aos costumes da época que destinavam às mulheres o cuidado do lar, as bonitas roupas e a busca por bons maridos. Alfonsina lutou por igualdade de direitos, voto universal, divórcio, igualdade salarial, direito a patrimônio e redução de jornada de trabalho. Uma mulher à frente de seu tempo.

E quando escolheu morrer, pois acreditava na escolha, o fez. Deixou uma carta ao amigo, ao filho e ao jornal em que era colaboradora. Fez um poema e cometeu suicídio no mar.

Há muita história sobre essa mulher, mas poucos dispostos a contá-la. Ao todo, foram 11 obras publicadas em vida, entre poemas e peças de teatro, e duas coletâneas que surgiram após a sua morte, uma de poesias completas e uma antologia de ensaios. Mesmo depois de ter entrado em domínio público, minhas pesquisas não identificaram nenhuma obra traduzida para língua portuguesa no Brasil e muito rara a disponibilidade de arquivos dos seus livros para download.

Como uma pequena contribuição, traduzi livremente os versos que tanto chamaram minha atenção. Que fique registrado que seguirei em busca de sua prosa.

Tú me quieres blancaTu me queres branca
Tú me quieres alba,
Me quieres de espumas,
Me quieres de nácar.
Que sea azucena
Sobre todas, casta.
De perfume tenue.
Corola cerrada.
Ni un rayo de luna
Filtrado me haya.
Ni una margarita
Se diga mi hermana.
Tú me quieres nívea,
Tú me quieres blanca,
Tú me quieres alba.
Tú que hubiste todas
Las copas a mano,
De frutos y mieles
Los labios morados.
Tú que en el banquete
Cubierto de pámpanos
Dejaste las carnes
Festejando a Baco.
Tú que en los jardines
Negros del Engaño
Vestido de rojo
Corriste al Estrago.
Tú que el esqueleto
Conservas intacto
No sé todavía
Por cuáles milagros,
Me pretendes blanca
(Dios te lo perdone)
Me pretendes casta
(Dios te lo perdone)
¡Me pretendes alba!
Huye hacia los bosques;
Vete a la montaña;
Límpiate la boca;
Vive en las cabañas;
Toca con las manos
La tierra mojada;
Alimenta el cuerpo
Con raíz amarga;
Bebe de las rocas;
Duerme sobre escarcha;
Renueva tejidos
Con salitre y agua;
Habla con los pájaros
Y lévate al alba.
Y cuando las carnes
Te sean tornadas,
Y cuando hayas puesto
En ellas el alma
Que por las alcobas
Se quedó enredada,
Entonces, buen hombre,
Preténdeme blanca,
Preténdeme nívea,
Preténdeme casta.
Tu me queres alva,
Me queres de espuma,
Me queres de nácar.
Que seja açucena
Sobre todas, casta.
De tênue perfume.
Corola cerrada.
Nem um raio de lua
Filtrado me haja.
Nem uma margarida
Se diga minha irmã.
Tu me queres niveal,
Tu me queres branca,
Tu me queres alva.
Tu que tiveste todas
As copas à mão,
De frutos e méis
Os púrpuros lábios.
Tu que no banquete
Prataria de folhas
Deixaste as carnes
Festejando a Baco.
Tu que nos jardins
Obscuros do Engano
Vestido de vermelho
Correste aos Destroços.
Tu que o esqueleto
Conservas intacto
Não sei todavia
Por quais milagres,
Me pretendes branca
(Deus te perdoe)
Me pretendes casta
(Deus te perdoe)
Me pretendes alva!
Foge até os bosques;
Vê a montanha;
Limpa a boca;
Vive nas cabanas;
Toca com as mãos
A terra molhada;
Alimenta o corpo
Com raiz amarga;
Bebe das bicas;
Dorme ao sereno;
Renova tecidos
Com salitre e água;
Fala com os pássaros
E nasce ao amanhecer.
E quando às carnes
Retornares,
E quando colocares
Nelas a alma
Que pelas alcovas
Ficara perdida,
Então, bom homem,
Exija-me branca,
Exija-me niveal,
Exija-me casta.

*Sarita Borelli é pós-graduada em Design Editorial pelo Senac, graduada em Letras pela Universidade de São Paulo, designer, editora responsável pela Editora Gota e idealizadora da Revista Aluvião.

Referências

DIZ, Tania. Alfonsina periodista. Ironía y sexualidad en la prensa argentina 1915-1925. Buenos Aires: Eudeba-Rojas, 2006.

MENDÉZ, Mariela; QUEIROLO, Graciela; SALOMONE, Alicia. Nosotras… y la piel. Selección de ensayos de Alfonsina Storni. Buenos Aires: Alfaguara, 1998.

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