A desumanização pela fome

Imagem dos dentes de um garfo.
© Pixabay License

por Luis Gustavo Reis*


“A humanidade se divide em dois grupos: o grupo dos que não comem e o grupo dos que não dormem, com medo da revolta dos que não comem.”

(Josué de Castro, Geografia da fome)

Há 70 anos, no dia 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas publicava a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Aprovada por 48 estados, o documento era uma resposta às brutalidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial e um facho de luz, ainda que simbólico, no restabelecimento da dignidade dos que sobreviveram ao conflito.

Composta por um preâmbulo e mais 30 artigos que tratam de questões como liberdade, dignidade, igualdade, moradia, ensino, alimentação, a DUDH é hoje o documento mais traduzido no mundo, conhecida em cerca de 500 idiomas e dialetos. Ela também inspirou outros documentos internacionais e sistemas com o mesmo fim quanto penetrou nas Cartas Magnas de diferentes países por meio dos direitos fundamentais. Na Constituição brasileira de 1946, por exemplo, os direitos fundamentais já eram consignados, mas é na Carta de 1988 que se assinala a “prevalência dos direitos humanos”.

No artigo 25 da Declaração, consta que:

Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

Ao cotejar os ideais consagrados nesse trecho do artigo com a realidade atual, constamos o quanto as palavras não alcançam seus objetivos, relegando uma significativa carga de frustração.

Daqui para frente, caro leitor, aproveitando a referência à alimentação sinalizada na DUDH, será sobre esse assunto que trataremos, especificamente sobre a fome.

Josué de Castro, um dos geógrafos brasileiros mais respeitados no mundo, escreveu a seguinte passagem:

A fome não é um produto da superpopulação: a fome já existia em massa antes do fenômeno da explosão demográfica do pós-guerra. Apenas esta fome que dizimava as populações do Terceiro Mundo era escamoteada, era abafada, era escondida. Não se falava do assunto que era vergonhoso: a fome era tabu. (CASTRO, 2008, p. 32)

Quase 50 anos depois da publicação do texto, o tema da fome continua presente e constitui uma mancha na história contemporânea. Segundo um relatório produzido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), cerca de 821 milhões de pessoas sofrem de subnutrição no mundo atualmente[1]. A fome anula qualquer possibilidade de vida digna, representa um escárnio, constrange nossa existência. Se há fome, não há direitos humanos garantidos – a alimentação decente é elemento basilar da condição humana.

Em um mundo que esbanja alimento e bate recordes alarmantes de obesidade, cabe a pergunta: Por que ainda convivemos com a fome?

Estudos mostram que o desperdício de alimentos alcança índices altíssimos. Cerca de 1,3 bilhão de toneladas de comida vão para o lixo anualmente em todo o planeta, sendo que metade desse desperdício ocorre na fase inicial da produção, manipulação, pós-colheita e armazenagem. O restante acontece nas fases de processamento, distribuição e consumo.

No Brasil, por exemplo, mais da metade do que produzimos vai para o lixo. Um levantamento feito pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) aponta que o Brasil – quarto maior produtor de alimentos do mundo – desperdiça 40 mil toneladas de alimentos diariamente, quantidade suficiente para garantir as três refeições do dia (café da manhã, almoço e jantar) para mais de 19 milhões de pessoas.

Há no mundo regiões inteiras devastadas pela fome. Na África Subsaariana, uma em cada quatro pessoas convive com a fome crônica. No continente asiático, aproximadamente 526 milhões de pessoas não têm o que comer. Para termos uma ideia, somados todos os países desenvolvidos, principalmente os europeus, eles desperdiçam, em média, 222 milhões de toneladas de alimentos, quase a mesma quantidade produzida para alimentar a África Subsaariana, que produz 230 milhões de toneladas. Os dados assustam e mostram que a fome é um problema de distribuição, não de produção.

Um documento elaborado pela Cúpula do Milênio, em reunião promovida pela ONU no ano 2000, fixava a erradicação da extrema pobreza e da fome como um dos objetivos atingíveis até dezembro de 2015. Ainda que os 189 países-membros tenham ratificado o documento, as metas não foram atingidas. Atualmente, 1,2 bilhão de pessoas vivem em extrema pobreza. Um em cada oito indivíduos não dispõe de alimentação suficiente para suprir suas necessidades energéticas.

Enquanto a fome persiste, as autoridades políticas mundiais estão paralisadas pelo descaso. Sobram bravatas e promessas de combate a fome, mas as ações efetivas são exíguas.

Em outra esfera, há as grandes redes de fast food, bastante conhecidas pela exploração sistemática de seus funcionários, diga-se de passagem, mas também pela quantidade de comida que jogam no lixo, pouco se mobilizam para conter o desperdício em suas dependências ou para criar ações de reaproveitamento de alimentos. Segundo informações do instituto de pesquisa World Resourses Institute (WRI) Brasil[2], a porcentagem de desperdício global em redes fast food fica em torno de 9,55%[3].

No Brasil, os cidadãos também podem mensurar suas responsabilidades quando optam por descartar qualquer alimento que não consideram adequado para o consumo. Dados compilados pela agência Edelman apontam que 49%[4] dos brasileiros jogam comida fora diariamente. O paradoxo identificado pela pesquisa é que 77% dos entrevistados dizem que raramente ou nunca jogam alimentos no lixo. Ou seja, embora desperdicem comida diariamente, as pessoas não estão cientes ou não se sentem confortáveis em admitir.

Existindo ou não a Declaração dos Direitos Humanos, ninguém deveria passar fome. O documento apenas mostra como seus artigos são importantes, bem articulados, mas impotentes e ineficazes. Nenhum país signatário é pressionado ou compromissado o bastante para cumprir o que ali foi sancionado.

Quando grandes catástrofes ocorrem e o número de famintos aumentar, como ocorreu recentemente em Moçambique, aí pesa nossa consciência, fere nossa sensibilidade, arranca-nos lágrimas de compaixão. Se a fome ainda existe, é principalmente pelo nosso descaso e pela nossa falta de solidariedade. Em um mundo minimamente decente, ninguém aceitaria um semelhante chafurdando o lixo procurando alimento, sofrendo o flagelo da fome e suas terríveis consequências físicas e psíquicas. No entanto, vivemos numa sociedade anestesiada e doente, onde a fome é naturalizada e aceita.

Constatar que dispomos de todas as técnicas de produção, mas que ainda assim milhares de crianças, adultos e idosos não têm condições mínimas de sobrevivência reduz nossa humanidade e coloca em xeque um dos princípios salutares da vida em sociedade: o compromisso com o próximo.

*Luis Gustavo Reis é professor e editor de livros didáticos.

Referência

CASTRO, J. Geografia da fome. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

[1] ONU Brasil. FAO: fome aumenta no mundo e afeta 821 milhões de pessoas. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/fao-fome-aumenta-no-mundo-e-afeta-821-milhoes-de-pessoas/>. Acesso em: ago. 2019.

[2] Ver mais em: https://wribrasil.org.br/sites/default/files/Padrao-PDA_resumo-executivo.pdf.  Acesso em: ago. 2019.

[4] Ver mais em: https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2018/06/epoca-negocios-mais-de-60-dos-brasileiros-desperdicam-alimento-em-bom-estado-diz-pesquisa.html. Acesso em: ago. 2019.

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