Direitos humanos para humanos direitos?

Fotografia de televisores antigos
Foto: ©阿江 on Unsplash

 

por Marcel Gugoni*


Com microfone em mãos e acompanhado de uma câmera tremida, um repórter segue a passos rápidos uma mulher na rua. Implora a ela que comente alguma coisa, enquanto ela tenta, em vão, proteger-se das perguntas, da filmagem, da perseguição. Em pouco mais de 2 minutos de reportagem, a mulher se irrita, tapa o rosto com uma mão, franze o cenho, responde grosseiramente, tentando demonstrar qualquer inocência na situação, como quem cala a respeito de um assunto sobre o qual nada sabe, em meio a um turbilhão midiático em que ela foi arrastada sem seu consentimento.[1]

A mulher, Tatiana, sequer é identificada pelo nome completo. A ela não é dado qualquer tipo de apoio ou condolência, sequer um sinal de respeito de seu espaço e de seu momento. Atordoada, Tatiana pede “por favor”, enquanto transborda seu incômodo. Seus pedidos são sumariamente ignorados. Entregam-lhe apenas perguntas secas, em tom de crítica e censura, a fim de que fale qualquer coisa “para defender a honra da sua família!”. “Você se sente culpada de alguma forma?”, pergunta o repórter, insinuando sua culpa e incitando no telespectador o julgamento prévio da mãe por um ato do filho. “Você quer ajuda, Tatiana? Vamos conversar um pouquinho”, prossegue ele, oferecendo algo que sua equipe de reportagem, o apresentador do programa e as próprias diretrizes empresariais não podem dar: respeito a um ser humano enlutado, confuso, aturdido com a situação.

A tela exibe, em letras maiúsculas, o julgamento da culpa dela em uma aterradora alcunha: “MASSACRE NA ESCOLA. EXCLUSIVO! MÃE DO ATIRADOR GUILHERME DESABAFA”. Tatiana Taucci, de 35 anos, é a mãe de Guilherme Taucci de Monteiro, um dos adolescentes responsáveis pelo ataque na Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano (Grande São Paulo), que deixou nove pessoas mortas, incluindo os dois perpetradores. Nesse caso, ser mãe já basta para receber do repórter e do apresentador de televisão o mesmo tratamento dispensado a cúmplices, suspeitos e acusados de crimes. À falta do filho, que se suicidou no massacre, a televisão escolheu a mãe como o bode expiatório do momento.

O pedido do repórter do programa Brasil Urgente, apresentado por Datena na rede Bandeirantes, incentiva claramente que a mulher fale para defender sua honra. A honra que ela tem de defender, em rede nacional, é a mesma honra que está sendo duramente atacada pelo próprio repórter, a mando da pauta jornalística do dia, que faz girar a engrenagem da audiência e da guerra por pontos no Ibope. O programa estampa a “entrevista” como produto “EXCLUSIVO!” – o sofrimento daquela mãe é o único produto disponível para jornalísticos como os de Datena e companhia.

A violência explícita nas mídias não é novidade. Tampouco o é a velocidade com que as mídias expedem seus vereditos. O problema está em fomentar a violência, em desrespeitar os direitos humanos, em garantir que os discursos de sujeitos excluídos também ocupem lugares subalternos e/ou silenciados nas mídias, reproduzindo a mesma subordinação que a sociedade impõem a esses sujeitos. Afinal, para alguém que ocupa posições sociais marginais de mulher, negra, periférica, desempregada, dependente química, é quase um salto natural, para a mídia, tratá-la como cúmplice de um crime.

Ao proceder dessa forma, a reportagem apenas torna clara a postura de afronta aos direitos humanos com a qual a mídia – com especial destaque a mídia sensacionalista de tabloides e programas policialescos – se acostumou. Com base nesse posicionamento, a mídia faz seus telespectadores associarem a defesa dos direitos humanos à defesa de bandidos.[2] Essa associação, naturalizada em uma parcela da sociedade que se demonstra cada vez mais violenta e que vitupera sem escrúpulos que “bandido bom é bandido morto”, decorre de um cenário em que a qualidade da informação importa menos do que o espetáculo, o conflito, o drama e a depreciação dos sujeitos diante das câmeras. Com grande frequência, os apresentadores desses programas ecoam esses mesmos chavões conhecidos – como “direitos humanos para humanos direitos”  –, que de tão usados, nos permitem encaixar de imediato seus enunciadores em uma ideologia extremista, excludente e violenta.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 2009) determina que “ninguém será sujeito à interferência em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.”

Uma análise de João Filho (2019), no The Intercept Brasil, aponta de modo preciso o problema desses programas: “a violência policial é reverenciada, suspeitos são tratados como culpados e os direitos humanos servem apenas para proteger bandido. Pobres, negros e gays têm seus estereótipos negativos reforçados todos os dias”.

É curioso ver como a grande mídia tem dado destaque para a hipótese de que games violentos teriam influência na tragédia de Suzano, como se ela própria não vendesse violência como entretenimento para crianças todos os dias da semana há quase três décadas. Em qualquer birosca de qualquer lugar do Brasil, você encontrará um televisor escorrendo sangue enquanto passa um Brasil Urgente, um Cidade Alerta ou um Balanço Geral da vida. (JOÃO FILHO, 2019)

A cenografia do espetáculo é toda montada sobre afrontas aos direitos humanos. “As violações de direitos se multiplicam nos meios de comunicação de massa, com a profusão dos chamados programas policialescos e com o crescimento dos programas de auditório baseados no escárnio, na estigmatização, humilhação e violação da dignidade humana”, aponta o Observatório do Direito à Comunicação.[3]

A mídia sofre com o esvaziamento dos sentidos, que é próprio da fragmentação das comunidades e da política na contemporaneidade. O “excesso midiático” (DEBORD, 1997) desanda em demolir os valores institucionais que deveriam ser defendidos conforme a estrutura do Estado de direito. A crise do próprio Estado deslegitima a confiança do cidadão sobre a capacidade da máquina estatal para prover segurança, trabalho e outras necessidades básicas. Entre essas necessidades, os direitos humanos. Esse caldo é o que alguns autores chamam de pós-modernidade.

A experiência do tempo e do espaço se transformou, a confiança na associação entre juízos científicos e morais ruiu, a estética triunfou sobre a ética como foco primário de preocupação intelectual e social, as imagens dominaram as narrativas, a efemeridade e a fragmentação assumiram precedência sobre verdades eternas e sobre a política unificada e as explicações deixaram o âmbito dos fundamentos materiais e político-econômicos e passaram para a consideração de práticas políticas e culturais autônomas. (HARVEY, 2012, p. 293.)

Como coloca Cruz (2011), a realidade midiática brasileira é marcada pela cultura do efêmero, em que informações superficiais são descartáveis e em que predomina o pensamento pobre e acrítico. Nesse caldo cultural, não estranha que a violência (na figura do armamentismo da população) seja apontada como solução para acabar com a violência. Pouco se fala, no entanto, que a liberdade irrestrita da mídia, a qual visa a atender exclusivamente aos interesses dos detentores dos meios de comunicação de massa, ignore os próprios deslizes das coberturas jornalísticas degradantes e desrespeitosas aos direitos humanos. Para essa mídia, só há direitos humanos para humanos direitos?

 * Marcel Gugoni é editor de livros didáticos, graduado em Jornalismo e em História, especialista em Comunicação Digital pela ECA-USP. E-mail: marcel.gugoni@gmail.com.

[1] BRASIL URGENTE. Mãe de atirador diz não saber o que motivou atitude do filho. 13 mar. 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=WhVg0NsRrRw>. Acesso em: 28 maio 2019.

[2] Como demonstra esse breve balanço sobre datas como o Dia Internacional dos Direitos Humanos ou o Dia da Consciência Negra, disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/a-midia-ignora-os-direitos-humanos/>. Acesso em: 2 jun. 2019.

[3] Disponível em: <http://www.intervozes.org.br/direitoacomunicacao/?page_id=28554>. Acesso em: 28 maio 2019.

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