A força do hábito

Foto de cima de aproximadamente trinta pessoas caminhando na rua, na pista onde normalmente transitam carros.


por Felipe Sanches*


Álvaro é um homem de hábitos.

Habitualmente, desde 1988, quando, aos 16 anos de idade, foi contratado como contínuo pelo Banco da Cidade, Álvaro mantinha o mesmo ritual matinal (já sentenciado): despertador, chinelos, lençóis esticados, rádio de pilha ligado, tampa do vaso levantada, pente de mão, café, pão seco, Hollywood filtro ocre, chuveiro, dentes frescos, navalha e espuma, cueca estilo sunga, calça social, cinto e sapato, meias pretas e camisa branca, paletó, pente novamente, colônia, chave na porta. Porém, naquela manhã de 21 de setembro de 2005, tudo parecia fora do lugar.

O despertador falhou e Álvaro acordou, no susto, 13 minutos atrasado. Não encontrou o par de chinelos e, por conta do tempo perdido, deixou a cama desarrumada. Tentou, em vão, ligar o rádio de pilha, mas ela parecia estar descarregada. Em seguida, percebeu que faltava água e se recordou do aviso do corte no fornecimento para aquele dia, afixado no mural de recados do prédio. Abriu a geladeira e percebeu que só havia água com gás, que utilizou para escovar os dentes após a última e aflita tragada no sagrado primeiro Hollywood do dia, fumado até a metade. A incomum barba por fazer, na iminência de ganhar a rua, o inquietava mais do que a falta do café, do pão ou do banho naquela fresca manhã.

Lembrou-se de que tinha deixado, por engano, as cuecas lavadas dentro da máquina no dia anterior, o que o obrigou a vestir uma samba-canção, que, por sua vez, o inclinou a escolher uma calça mais larga, de cor vinho – menos sóbria que o usual –, e percebeu a gola da camisa branca escolhida levemente amarelada pelo tempo, mas mesmo assim a vestiu. Somente horas depois, viria a notar a mancha de gordura abaixo do segundo botão. Não tinha paletó que combinasse com aquela cor de calça dentro do armário, o que o obrigou a escolher uma velha jaqueta de couro marrom, mesma cor das meias, dos sapatos e do cinto, porém os quatro de tons diferentes entre si.

Pegou, afoitamente, o frasco de colônia para se perfumar e, estabanado, o deixou cair. O vasilhame de vidro se espatifou no chão. Álvaro varreu os cacos rapidamente, os embrulhou no papel toalha utilizado para limpar o líquido desperdiçado e os depositou no cesto de lixo reciclável.

Girou a chave tetra rapidamente e ela travou. Tentou voltá-la à posição inicial, mas estava emperrada. Não tinha o telefone do chaveiro.

Desesperado, acendeu mais um Hollywood filtro ocre. Já estava meia hora atrasado. Lembrou-se de que havia o contato do chaveiro no mural de recados do térreo e, rapidamente, olhou para baixo, da janela da sala, para observar se algum morador saía do edifício. Mesmo posicionado a quase 30 metros de altura do nível da rua, naquele momento, pareceu-lhe mais eficiente do que discar 102 no telefone.

Viu, lá do alto, longos e lisos cabelos loiros deixando o portão de entrada e deu o mais alto grito que a sua timidez permitia:

— Vizinha! Vizinha!!

A moça olhou para cima e avistou o esbaforido vizinho. Álvaro fixou os olhos naquele rosto angelical com todas as suas forças, o máximo que a sua visão com auxílio de óculos permitia. A partir daquele momento, nada mais parecia lhe importar. Sua vida nunca mais seria a mesma.

*Felipe Sanches é graduado em Geografia pela Universidade de São Paulo, poeta, editor de livros didáticos, colaborador de publicações da Editora Gota e coidealizador da Revista Aluvião.

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