Lula preso

Manifestante segura cartaz vermelho com o desenho do rosto do ex-presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva, em preto. Abaixo do desenho do rosto, em branco, os dizeres: "Tô com Lula".


por Eduardo Bonzatto*


Em seu discurso de 07/04/2017, Lula afirmou que:

“O que eu não posso admitir é procurador que fez um PowerPoint e foi para a televisão dizer que o PT é uma organização criminosa que nasceu para roubar o Brasil e que o Lula, por ser a figura mais importante do partido, o Lula é o chefe. Portanto, se o Lula é o chefe, diz o procurador, eu não preciso de provas, eu tenho convicção”

Em conversa com um amigo sobre a festa midiática criada em torno da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, resolvi elaborar essa reflexão. Muito mais uma resposta descontraída às perguntas, do que um texto engessado pelos padrões das análises sociológicas.

Para entender toda a celeuma criada a partir da prisão, é preciso reconhecer dois pontos que pretendo destrinchar ao longo do texto.

Em primeiro lugar, Lula e seu governo foram responsáveis pelos maiores privilégios que as elites tiveram desde a redemocratização. Os bancos nunca ganharam tanto dinheiro e as corporações globais transferiram para o país seus tentáculos bancários. Lula conseguiu tal proeza ofertando cartões de crédito aos pobres e realizando ampla democratização do consumo, iniciativas que contribuíram para a percepção desta camada vasta da população de que a governança dele foi a melhor.

De modo geral, durante o governo Lula aumentaram as grandes fortunas e expandiram as velhas, características basilares que definem o modelo econômico neoliberal, onde a concentração de renda se agudiza. Esse fato faz com que as elites nada tenham a reclamar de Lula e de seu governo. Aliás, parte de sua governança foi concedendo benesses às velhas oligarquias políticas que jamais contrariou.

As questões importantes da sociedade brasileira, tais como reforma agrária, monopólio das comunicações, além dos favorecimentos bancários, passaram ao largo e não foram enfrentadas pelos governos petistas. O bolsa família, um dos protocolos neoliberais criados por Milton Friedman dentro do Consenso de Washington e seguido à risca pelo lulismo, contemplou mais de 20 milhões de pessoas ampliando a base de consumo.

O ciclo neoliberal é facilmente identificado: privatização ou concessão, desregulamentação das leis trabalhistas, desemprego estrutural, reengenharia, desindustrialização, globalização com eliminação das leis protecionistas, bens obsolescentes, ampliação do setor de serviços, democratização do crédito e do consumo, além de endividamento do trabalhador. A ampliação do crédito e as facilidades do consumo demandam muito trabalho, pouco dinheiro, muito consumo, muito endividamento, muita submissão.

O período de governo do lulismo conquistou grandes índices de popularidade, pois atingiu um equilíbrio extraordinário entre o apaziguamento de todos: pobres, classes médias e elites. Essas práticas políticas ficaram mais conhecidas como Consenso de Brasília, devido à pacificação conquistada, pelo menos até as jornadas de junho de 2013, quando todo ideário esquerda/direita precisou ser requisitado para conter a emergência caótica dos primeiros momentos da sublevação.

A polarização ideológica no Brasil esteve adormecida por mais de 20 anos, até emergir em forma de cartilhas que ensinavam quais características eram de esquerda e quais eram de direita. Ainda hoje aparece nas redes sociais que ser de esquerda é, nas palavras do ex-presidente do Uruguai José Mujica, “uma posição filosófica perante a vida, onde a solidariedade prevalece sobre o egoísmo”. Enquanto ser de direita é ser fascista, defensor do conservadorismo e das elites, daí toda fúria devotada ao chamado “pobre de direita”.

A dicotomia esquerda/direita provoca confusão na autoimagem de parte da classe média, gerando uma filosofia partilhada por alguns de seus integrantes que criticam seus próprios valores como se abraçassem outros, embora dividam os mesmos privilégios. A simplicidade ideológica tem lá sua função social.

Mas esses fatores não explicam o espetáculo da prisão de Lula e toda perseguição declaradamente impetrada contra ele (aqui entramos no segundo ponto da reflexão). É que o grande problema não é o Lula, mas o Partido dos Trabalhadores (PT).

O partido tem uma característica historicamente inspirada e conhecida: desde que chegou ao poder, aparelhou a estrutura do estado com tal voracidade que deixou pouco espaço para as demais agremiações. Os burocratas incharam os escalões médios, onde milhões de pessoas encontraram trabalho e abrigo sob a tutela do estado, ampliando vertiginosamente a máquina pública. Fato é que o Partido dos Trabalhadores estava preparado para o aparelhamento do estado e aprenderam a aprimorá-lo com sofisticação.

A maioria dos políticos roubam, ação trivial e constante nas democracias do atual período histórico. Embora no Brasil a roubalheira ocorra de modo mais acintoso, não faltam exemplos de países tidos como “mais civilizados” em que a todo instante é possível saber da existência de corrupção dentro da política. Todavia, a corrupção no PT é algo que está intrinsecamente relacionado à natureza do partido, é um dado peculiar da sua constituição.

A maioria dos políticos envolvidos em casos de corrupção, durante o período em que governam, transferem o máximo possível de recursos para o autobenefício, jamais para favorecer o partido. É justamente por isso que causa curiosidade Lula ter sido acusado de corrupto por um apartamento no Guarujá e um sítio em Atibaia, fatos irrisórios nessa questão.

Por que o estardalhaço, então? O motivo não está no favorecimento pessoal (os referidos imóveis), mas no fato de a corrupção petista estar à serviço do enervamento do grupo nas artérias do estado. O petismo levou à cabo um projeto de perpetuidade no poder: articularam ações de favorecimento do partido que nada tinham relação com benefício pessoal. Eis aí sua característica mais inusitada.

Por isso, inclusive, Dilma foi tirada do cargo. Considere o tempo que o PT ficaria no poder se ela não fosse defenestrada: 2002 Lula, 2006 Lula, 2010 Dilma, 2014 Dilma, 2018 Lula, 2022 Lula, 2026 sucessor, 2030 sucessor. Um partido governando de modo enraizado na estrutura do estado por trinta anos no poder e com uma possibilidade de longevidade imprevisível.

O problema não é Lula, mas o PT e sua estratégia de aparelhamento do estado. Claro que como representante político dos projetos neoliberais, qualquer partido fará o que deve ser feito, pois não há escolhas ou opções nesse campo. O jogo político, independente da região do mundo, não está isento dos determinismos da máquina de dominação. A política profissional está à serviço do projeto neoliberal e todos os expedientes serão utilizados sem remorso ou cuidado para que o projeto siga seu curso.

Luiz Mir escreveu um livro sobre o PT chamado “O Partido de Deus”, em que a natureza singular do projeto partidário pode ser vislumbrada. Uma vez no poder, o PT demonstrou toda sua eficácia e os demais partidos foram pegos desprevenidos, sobretudo porque jamais imaginaram a forma petista de colonização estatal. Não à toa, o esforço para eliminar Lula é feito tanto por partidos que ainda lutam para expurgar os petistas, quanto por pessoas que estão na estrutura do estado: ministério público, sistema judiciário, polícia federal, senado ou câmara dos deputados.

O partidarismo popular, o grande apelo da mídia, os dramas pessoais são elementos superficiais diante do que está em jogo. E o que está em jogo é a eliminação do máximo de vestígios locupletados pelo PT das veias do estado. As ideologias têm por função justamente escamotear questões menos prosaicas ou elementares e espetacularizar para que as pessoas se vinculem a ideias e não percebam as artérias sob a pele.

Enquanto o PMDB aprendeu a dominar os governos depois da emergência democrática, tomando o poder ao dominar as casas políticas, o PT aprendeu a preencher a estrutura de estado com seus correligionários, insidiosamente, silenciosamente, estrategicamente, dominando a burocracia do estado em todas as camadas de sua estrutura.

*Eduardo Bonzatto é permacultor e professor na Universidade Federal do Sul da Bahia.

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