A fronteira invisível entre Erbil e Brasília


por Konrad Rahal*


Como trabalhador humanitário, vejo-me todos os dias diante da difícil tarefa de não me posicionar politicamente, de forma explícita, a respeito das lutas sociais nos lugares em que atuo. É muito interessante e difícil, simultaneamente, viver em meio à luta por autodeterminação do povo curdo no Iraque e não me envolver, nem em pequenas conversas com colegas curdos que trabalham na mesma organização. Nosso mandato de imparcialidade, neutralidade, humanidade e não discriminação formam a base principiológica de nossa atuação, ao mesmo tempo que impõe limites a nossa possibilidade de manifestar apoio e somar a lutas sociais.

Apesar de estar vivendo a maior parte do meu tempo no Curdistão iraquiano, sinto-me como um observador remoto, quase como se não estivesse presente. Quando vejo a frustração dos meus colegas curdos diante da inglória luta por autodeterminação do Curdistão, tenho o mesmo sentimento de melancolia e distanciamento de quando leio notícias sobre o ataque feroz do governo Temer aos direitos humanos conquistados no Brasil.

Quando o autodenominado Estado Islâmico cruzou o deserto sírio e conquistou vastas porções de territórios no oeste e no norte do Iraque, chegando às periferias de Bagdá, o exército curdo – conhecido como Peshmerga (“aqueles que enfrentam a morte”, em português) – formou a resistência, ao mesmo tempo que maioria do exército iraquiano abandonou seus postos. Nesse período, em meados de 2014, os Peshmerga também ocuparam regiões sob controle do governo central iraquiano – principalmente a província de Kirkuk, a parte norte de Diala e alguns pontos de Ninawa. Essas áreas, chamadas de territórios disputados, possuem dispositivo na constituição nacional iraquiana que lhes garante o direito de negociação de posse territorial. São regiões de composição étnica mista, com presença de curdos, árabes e turcomenos.

Os Peshmerga ocuparam e controlaram esses territórios até recentemente. Em meados de outubro deste ano, o exército federal iraquiano, com apoio das milícias xiitas Hashd al-Shaabi (“forças de mobilização popular”, em português), retomou as terras em menos de um dia, após momentos de apreensão da população curda de que uma nova guerra civil fosse começar. Os Peshmerga se retiraram de suas posições, abrindo espaço para a reocupação das áreas pelas forças controladas por Bagdá e as Hashd al-Shaabi.

E aqui traço um paralelo entre Brasil e Curdistão iraquiano. O sentimento de consternação e abatimento da população curda diante da retirada dos Peshmerga dos territórios contestados pelo dispositivo legal – que muitos consideram um ato de traição – parece-me similar à cassação dos direitos humanos, conquistados pela população brasileira, promovida em fina sintonia por Congresso, Planalto e Supremo Tribunal Federal.

Nas duas situações, os donos do poder agem de forma a privilegiar interesses próprios e corporativos em detrimento de décadas de conquistas de direitos fundados em lutas sociais. Seja em Erbil ou em Brasília, as formas tradicionais de representação popular, formuladas dentro do conceito de democracia neoliberal, mostram-se contrárias aos anseios do povo e alinhadas aos interesses do poder. Como consequência, vejo-me novamente questionando os princípios que fundamentam meu trabalho como instrumento de luta, ao me sentir impotente diante de um colega de trabalho que teve de fugir de sua casa, com sua família, na calada da noite, durante a ocupação das tropas iraquianas, assim como percebo o colega de orientação sexual diversa, que luta pela identidade de gênero no Brasil, tendo que se confrontar com o absurdo de sua existência ser considerada passível de cura.

 

* Konrad Rahal é advogado e mestre em direito internacional dos refugiados.

 

Leia mais sobre a questão curda em:

EFE. Supremo iraquiano anula resultados do referendo curdo. Exame, 20 nov. 2017. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/mundo/supremo-iraquiano-anula-resultados-do-referendo-curdo/>. Acesso em: 17 dez. 2017.

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