A representatividade feminina no combate à Pandemia

Foto em close de uma mulher negra, sendo possível visualizar apenas que ela veste um jaleco branco, como os dos cientistas, segurando em suas mãos um modelo tridimensional de fórmula de química molecular.
Foto: RF._.studio no Pexels

por Flávia Fonseca Bagno*

“A vida não é fácil para nenhum de nós. Mas e daí? Nós devemos ter persistência e, acima de tudo, confiança em nós mesmos. Devemos acreditar que somos talentosos em alguma coisa, e que essa coisa, a qualquer custo, deve ser alcançada.” (Marie Curie, (vencedora do Prêmio Nobel de Física em 1903 e do Prêmio Nobel de Química em 1911).

Ao longo da história e do processo de desenvolvimento científico, apesar de muitas perdas humanas, as grandes catástrofes trouxeram também oportunidades de melhorias tecnológicas. Hoje, eu percebo que a pandemia do SARS-CoV-2 nos trouxe ainda mais do que isso. Também foi uma oportunidade de a Ciência demonstrar seu valor, assim como quem está por trás dela.

No início de 2020, diante da ameaça do novo coronavírus, meu orientador me procurou e pediu que eu fizesse um levantamento de possíveis alvos antigênicos, isto é, porções do vírus que poderiam ter alguma importância para o diagnóstico e/ou para formulações vacinais. Mesmo se preocupando desde cedo, ninguém fazia ideia do que estava por vir. O SARS-CoV-2 desconstruiu o mundo como o conhecíamos. De transmissão direta, muitas vezes assintomática, em pleno mundo globalizado e cada vez mais populoso, a COVID-19 se propagou de maneira indiscriminada e, em pouco tempo, se tornou a maior crise sanitária dos últimos 100 anos.

Em março de 2020, todos os outros projetos do nosso laboratório pararam pela urgência da pandemia e eu comecei a trabalhar com o desenvolvimento de testes para detectar anticorpos contra o SARS-CoV-2. Esses anticorpos são causados após uma exposição prévia ao vírus ou a componentes do mesmo, que pode ser por meio de uma infecção ou da própria vacinação. A detecção desses anticorpos é importante, pois indica se o sistema imune do paciente está sendo capaz de reagir contra o vírus, conferindo certa imunidade.

Naquela época, as informações que nós tínhamos a respeito do vírus ainda eram muito escassas, sendo que, nosso ponto de partida foram estudos a respeito do SARS-CoV-1. Entretanto, uma informação que eu acredito que tenha sido crucial para o nosso projeto foi a primeira sequência de SARS-CoV-2 isolada no Brasil. No final de fevereiro, apenas 48 horas após o caso ter sido confirmado, a sequência completa do genoma foi publicada pela equipe das doutoras Ester Sabino e Jaqueline de Jesus, em sua maioria, feminina.

Desde então, muitas vezes eu me senti no “olho do furacão”. Eu precisava produzir um teste praticamente do zero, o que não é nada fácil. Logicamente, não foi um trabalho de mérito único. O know-how que me permitiu desenvolver um kit de diagnóstico em cinco meses foi resultado de anos de dedicação de outras mulheres que vieram antes de mim, inclusive do mesmo grupo de pesquisa. E mesmo com essa responsabilidade toda, eu percebi que eu estava no momento certo, no lugar certo. A oportunidade de trabalhar na linha de frente me transformou. Foi uma mistura de pressão, responsabilidade e entrega. E por mais imprevisível que possa parecer, eu aprendi a ver a beleza no caos. Fazer parte disso me trouxe um retorno inesperado e, apesar de já saber da importância do nosso papel, como cientistas, pela primeira vez eu senti isso na pele. Mesmo com tantas decepções políticas, a pandemia me ensinou a executar o meu trabalho pelas pessoas que acreditam nele.

O nosso kit de diagnóstico surgiu na Universidade Pública e está sendo produzido em larga escala em um dos maiores complexos biotecnológicos na América Latina, o instituto Bio-Manguinhos. Ele representa uma conquista não só da nossa equipe, mas da ciência brasileira como um todo e reflete a seriedade das pesquisas realizadas nas universidades, muitas vezes por mãos femininas.

Temos muito o que nos orgulhar e nos valorizar, pois se olharmos para trás, nunca antes houve tanto reconhecimento da atuação de cientistas mulheres no enfrentamento a doenças. Nós sempre fizemos parte da ciência, mas por vezes não tínhamos as mesmas oportunidades que temos hoje, ficando muitas vezes encobertas por trás de cientistas do sexo masculino. Um grande exemplo disso é o estudo de Rosalind Franklin com difrações de raio-X, que foi essencial para a elucidação da estrutura do DNA, publicada em 1953. A cientista morreu em 1958, sem ter seu trabalho reconhecido. O prêmio Nobel foi recebido por Watson e Crick, em 1962, juntamente com Wilkins, que nada mais fez do que usar os dados obtidos por Franklin.  Anos mais tarde, o próprio Watson revelou que isso não seria possível sem as contribuições feitas por ela.

Assim como Rosalind Franklin, existiram muitas outras, algumas que nem mesmo chegaram ao nosso conhecimento. Hoje, eu fico feliz por isso estar mudando. Se procurarmos nomes da ciência brasileira e mundial atuantes no combate a pandemia vamos encontrar inúmeros nomes femininos. Nosso próprio grupo de pesquisa é composto por mulheres, incluindo estudantes de graduação, nível técnico, pós-graduação e professoras. Logicamente, nem tudo é perfeito e ainda há muito o que melhorar. O machismo infelizmente ainda existe, mas ele tem ficado cada vez mais sem espaço.

“Certas pessoas – homens, é claro – me desencorajaram, dizendo que [ciência] não era uma boa carreira para as mulheres. Isso me levou a ter ainda mais perseverança.” (Françoise Barre, virologista, Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina, em 2008).

Sejamos todas como Françoise Barre e, se ainda há quem se incomode com isso, terá um grande trabalho pela frente, pois logo perceberá que a única coisa a temer é ficar para trás.

*Flávia Fonseca Bagno é bioquímica, doutora em Microbiologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, atuando no combate à COVID-19 como pesquisadora de Pós-Doutorado do Centro de Tecnologia em Vacinas (CT-Vacinas-UFMG).

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