Sobre indígenas e conservação

Ilustração de tabuleiro de xadrez, em três dimensões, dividido por uma faixa de fogo, como se fosse uma queimada.
Imagem: MasterTux no Pixabay

por Demétrius Lira Martins*

Em 1987, Aílton Krenak fazia um discurso inflamado no plenário do Congresso Nacional enquanto pintava seu rosto com pasta de jenipapo. Aílton chamava a atenção para o retrocesso nos direitos indígenas até então. Sua intervenção nas discussões da Assembleia Constituinte foi essencial para a inclusão dos direitos indígenas à terra e à cultura na constituição de 1988. Esta garante o respeito à organização social, às línguas, aos costumes, crenças e tradições indígenas. Essas garantias estão intrinsecamente relacionadas à proteção das terras indígenas, que cabe à União. É importante deixar claro que, apesar de a garantia do acesso à terra ser assegurada pela lei, os direitos dos indígenas não são condicionados à sua presença na terra, eles são garantidos em toda a extensão do território nacional. A atuação de Krenak no Congresso pontuou um passo importante na história do país referente ao direito indígena. Contudo, apesar da conquista desses direitos constarem na Constituição, sua garantia não é plenamente assegurada, o que torna a luta da causa indígena algo constante e atual no Brasil. 

Apesar de os povos indígenas terem seus direitos válidos em todo o território nacional, a demarcação de terras indígenas representa uma parte fundamental à garantia dos seus direitos. Como as comunidades indígenas são absolutamente dependentes dos recursos naturais à sua volta, a manutenção de sua sobrevivência e organização social estão intimamente associadas à conservação da biodiversidade das regiões em que habitam. A sacralização dos elementos do seu entorno estabelece a relação entre os povos indígenas e seu ambiente. Isto tem um efeito prático para a conservação dos diferentes ecossistemas e a consequente mitigação das mudanças climáticas. Não é por acaso que, entre os anos 2004 e 2014, foi possível traçar um paralelo entre a diminuição significativa do desmatamento na Amazônia e a criação de terras indígenas nesse bioma. 

Também não é por acaso que o atual crescente desprezo à garantia dos direitos indígenas, como a falta de demarcação e a permissividade à invasão de suas terras também estejam ocorrendo em associação à significativa escalada do desmatamento no país. Por isso, a manutenção dos povos indígenas em suas terras é uma maneira efetiva de conservar os ecossistemas naturais e diminuir nossas emissões de CO2. Assim, a luta pelo acesso dos povos indígenas à terra não deve estar apenas restrita aos povos indígenas, mas deve ser uma causa nacional. Infelizmente, esta é uma causa de grande risco para quem se dedica a lutar por ela.

Dados compilados pela Comissão Pastoral da Terra indicam que no Brasil, durante o ano de 2021, dos 35 assassinatos ocorridos por conflitos no campo, 10 foram de indígenas. Os dados agregados indicam ainda que o número de assassinatos de indígenas tem aumentado nos anos recentes. O aumento da letalidade nesses conflitos reflete não apenas a degradação estratégica e sistemática pela qual a Fundação Nacional do Índio (Funai) tem passado, mas envolve uma forma de negligência que abrange as causas socioambientais no Brasil. 

O crescimento de atividades ilegais, como grilagem de terras e mineração em áreas protegidas a exemplo das terras indígenas , tem resultado na morte não apenas dos próprios indígenas, mas de muitos homens e mulheres que atuam em favor das causas socioambientais. O crime brutal que tirou a vida de Bruno Pereira e Dom Phillips percorreu noticiários de todo o mundo e chamou a atenção da sociedade, mais uma vez, para as diversas frentes de destruição da Amazônia. Como é possível justificar tamanha desumanidade contra um indigenista e um jornalista que estavam trabalhando legalmente pelas causas nas quais acreditam? Isso não foi somente um duro golpe para as famílias de Bruno e Dom, mas também para as populações indígenas que atuavam junto aos trabalhos de Bruno na região, além de muitos que o respeitavam como um dos maiores especialistas em indígenas isolados. Muitos amigos e colegas de Bruno atuaram na sua busca e de Dom e, graças aos esforços da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, os corpos de Bruno e Dom foram encontrados e as investigações caminharam mais rapidamente. 

Temos seguido em direção a um abismo enquanto caminhamos destruindo nossos recursos ambientais, nossa cultura e nossos povos. Ao continuarmos perdendo nossos Chico Mendes, Dorothy Stang, José Claudio Ribeiro da Silva, Maria do Espírito Santo, Nizio Gomes, Paulo Paulino Guajajara, José Gomes, Marcia Nunes Lisboa, Joene Gomes, Emyra Wãjap, Bruno Pereira, Dom Phillips e muitos outros, estaremos dispostos a rejeitar nossa integridade nacional e nossa humanidade. 

Devemos decidir se o Brasil que queremos é o que tem ganhado os noticiários pela destruição dos nossos recursos ambientais e humanos ou o Brasil que se desenvolve baseado em uma gestão ambiental adequada, pensando na manutenção de sua biodiversidade e na inclusão social efetiva das populações originárias e tradicionais. Que sigamos na direção oposta ao abismo. 

*Demétrius Lira Martins é mestre em Ecologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e doutor em Ciências da Vida pela Imperial College London, com dez anos de experiência na Amazônia. Atualmente, é pesquisador na Unicamp.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *