É um belíssimo dia de sol, e eu estou sendo morto

Imagem: da autora.

 

por Paula Groff*

É um belíssimo dia de sol, e eu estou sendo morto. Eu, que nunca consegui entrar no espelho. Eu, que nunca consegui habitar essa pele tão útil e estranha, cujo viver mais primevo morreu no primeiro ato de abnegação: “Tens. Tens de cuidar dos teus irmãos.” Uma frase sem sujeito, dessas que o inglês não permite, dessas que não têm destinatário mas só o endereço. “Tens.” 

Uma identidade que se forma na matéria alheia, no cuidar, no entreter. Tive muito, mas nada era meu. Nada era eu. As mãos que pousavam a bandeja ao próximo, essas mãos não eram eu. Eram, quando muito, vetores. 

E agora essas mesmas mãos agarram a corda que me comprime o pescoço, e percebo tarde o que não era eu. Tão anulado e mundano que o mundo me perpassou, me ventou, me molhou, me moveu, mas nunca me acolheu, porque nada era eu. E quando não há mais nada entre eu e a corda em meu pescoço, percebo que quem vai morrer sou eu. O único ato que se dirige a mim, a ninguém mais, é este ato de matar-me. Matar-me e, com isso, um outro me diz, me afirma, me comprova. Eu não acreditaria se minha cabeça não oscilasse tanto, agora, entre a consciência e a inconsciência: eu estava vivo. 

É uma belíssima manhã de sol, e eu estou morrendo. E sou grato a este autor disforme a quem nem mesmo vi a face, pois assim ele me dá a possibilidade de existir: ele não existe, e está matando a mim. Estou, por um momento, sem a máscara de servilidade que costuraram-me tão bem à cara pai, mãe, patrão, irmão, cônjuge, governo, rede social. Cai-me bem essa máscara.

Finalmente, finalmente e derradeiramente, quem vai morrer sou EU. 

Talvez, se me facultado fosse, gostaria de me ver mais uma vez ao espelho, talvez diria-se pela primeira vez; e a incongruente atribuição de olhos, bochechas, têmporas, lóbulos, cílios, queixo, boca e sobrecenho fizesse sentido, e não fosse mais traços distribuídos a esmo sem muita preocupação de se combinarem para formar um alguém. E então, esse nariz avulso me pertenceria; eu apalparia orelhas completamente minhas pela primeira e única vez.

Mas essas fomes e objetivos pouco importam agora que finalmente tornei-me alguém: Até o ar que me escapa já vai tarde, intruso. A visão me escapa e pela primeira vez paro, paro de sempre enxergar os outros e tudo o que está ao meu redor; quantas vezes não quis incomodar! Quantas vezes me adiantei ante a visão de alguém que de algo precisava. Ver é enxergar o outro e cegar a si. Falar ao outro é calar a si. Só o ruído interno me importa. Aos poucos vai-me embora a coesão, a lógica tão sofridamente aprendida nos tempos de escola. Com o apagamento dos sentidos apaga-se junto a ordem do mundo e seus assentos marcados. “Tens de vestir a camisa da empresa”, disseram-me. “Tens de ver o que o público quer!”; mas quando visto outra camisa, para onde é que vai a minha? Quando ouço o meu público, para onde vai o que eu me calo? E quando agrado a todos, para onde escorre a minha tristeza?

Já não há mais tristeza. É difícil dizer se há sensação. A corda libertou-se. Não ouço os passos a fugir. Não ouço meu corpo que tomba. Há só o morno do sol a acalentar minhas pálpebras, e um gosto ferroso que parece me subir até a testa, como andaimes para uma terra distante. 

Porto, 29/10/23.

*Paula Groff é professora e escritora de materiais didáticos e paradidáticos em Lìngua Inglesa, qualificada com CELTA e DELTA. É também idealizadora de um projeto de bibliotecas de rua chamado Buziostecas.

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