Espiral

Pintura que lembra o olho de um furação visto de cima, em que a borda é composta por quadriculados coloridos nas cores básicas.
Imagem: Henrique José Teixeira Matos, CC BY-SA 3.0 <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0>, via Wikimedia Commons

por Lara Chacon*

Um dia, de repente, a Terra parou. Igual profetizou Raul Seixas.
A Terra parou, mas eu não estava pronta para parar.
Assim profetizou Isaac Newton por meio da Primeira Lei de Newton: um corpo em movimento uniforme em uma linha reta, tende a permanecer em movimento até que uma força externa atue sobre ele, mudando então seu estado.
A Terra parou, mas eu segui meu movimento de forma tão contundente que só parei ao dar a volta ao mundo e me chocar em mim mesma.
O impacto foi tão grande que se abriu um vão, uma fenda, uma rachadura.
Um buraco negro.
Capaz de tragar e prender tudo ao seu redor, dentro de si, por meio da sua espiral de tristeza.
Não é possível ver saída.
Apenas a espiral segue seu movimento durante todo o tempo do dia em que a Terra parou.
Entre o repouso e movimento, me percebi em queda livre em um abismo.
Em meio ao nada, era difícil saber se eu caia ou se o mundo me tragava.
Por dias sem fim segui em caindo em meio ao vácuo.
Não existia teto, não existia chão. Apenas a queda. Apenas um corpo.
Um corpo, cativeiro da dor, que era então sequestrado pelo nada, resultando em desespero.
Não havia tempo, não havia espaço, só havia um sofrimento tão imenso, que não era possível distinguir se ele era meu ou se eu que era dele.
O inferno é feito da solidão de dores sem sentido, mas que fazem sentir na pele o sabor da insanidade. A perda de olfato, onde você já é capaz de farejar o que é real e o que não é. Não é mais possível tatear os limites entre suas vísceras e o que está fora do você. Perde-se a tridimensionalidade do espaço, se tornando uma massa amorfa que se confunde ao mofo de dores que você sequer sabe se de fato lhe cabem.
Maus sentimentos, por osmose, se tornaram parte de mim, se fundiram a tal ponto, que se tornaram intrínsecos a mim. Percebo que gosto deles, quero protegê-los, porque se tornaram fonte de prazer, se tornaram uma fonte de sentir, se tornaram o que me faz perceber que ainda estou viva.
Só sente dor quem está vivo.
Enquanto a culpa me comia como um banquete real, eis que surge entre as fossas de mim, uma figura similar a tudo aquilo que denominam diabo.
Ele me olha, e então aponta correntes e pesos que me prendem a pesadelos recorrentes. Mostra ainda espinhos venenosos que crescem dentro de mim e torturam meus órgãos, infeccionam o corpo e apodrecem a mente.
Eu estou nua, feia, suja. Estou fedendo. Estou feroz.
E todos me olham. Não sei se por sorte ou por azar, não me reconhecem. A cena não condiz com a imagem que construí para eles. Mas ainda assim eles se deliciam, ao assistir todo drama, sofrimento e perturbação que se apresenta como um espetáculo macabro em frente a eles.
Todos me veem em um estado de constante putrefação.
O diabo me obriga a me olhar um espelho.
Eu vejo ali o reflexo do abismo.
“Abismo que cavastes com teus pés.”
Evitei tanto olhar os abismos que me habitavam, por medo de que me olhassem de volta, e então, sem ter a noção do que os compunha, do que eram feitos, suas profundidades, características…por desconhecê-los, me tornei igual.
O diabo veio apenas me dizer que aos esconder e negar, raiva, desejo, sofrimento, inveja, ganância, egoísmo e tantos outros “maus” pensamentos e sentimentos, me torno escrava deles. Na busca do extremo oposto, tentando fugir e me desvencilhar das minhas piores partes, das mais nefastas faces, eu sucumbo a elas, sou tragada por elas. É como estar se afogando e tentar nadar contra a corrente.
Em meio ao desespero, tentar ir contra o fluxo, te exauri para depois te afogar.
Na ânsia de sobreviver, perdem-se as forças para seguir vivendo.
É o medo do escuro que cria monstros embaixo da cama ou dentro do armário.
Negar seu lado sombrio, seus desejos viscerais, seus sentimentos maldosos, te faz desconhecê-los, e sem saber como são te lançam numa queda livre eterna em seus abismos.
É preciso saber a profundidade, conhecer os esqueletos que habitam o fundo, conhecer as entradas e saídas desse labirinto, para poder se mover com segurança dentro e fora dele, e não mais viver à mercê dele.
O reflexo do abismo é o que de você, você esconde de si próprio.
Seus espinhos e seus grilhões seguem te ferindo e aprisionando, independentemente de serem vistos ou não por quem quer que seja.
É mergulhando nos seus esgotos que você aprende a não se afogar em si mesmo.

*Lara Chacon é poeta, geógrafa e editora de materiais didáticos. Publica seus escritos na página: https://medium.com/@maresdemorrodeamores. E-mail: larac.chacon@gmail.com. Instagram: @laracarolinachaconcosta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *