Humanos direitos e direitos dos mano

Mural pintado com várias pessoas segurando cartazes
Foto: ©Bas Emmen on Unsplash

 

por Carlos Zanchetta*


“Direitos humanos para humanos direitos”

É com certo ar de superioridade que pessoas, em geral de visão conservadora, sacam o trocadilho em conversas e discussões. Veem nele um raciocínio “esperto”, como se inverter termos de uma expressão fosse assim um touché no oponente. “Arrá! Você defende os direitos humanos, mas por um acaso se esqueceu de que eles se destinam apenas a ‘humanos direitos’?”

Seria esse slogan simples trocadilho, jogo de palavras despretensioso?

Não, ao que parece. Ele expressa, de maneira enviesada, uma concepção específica de direitos humanos. O princípio que o embasa é: aqueles que são seres humanos direitos, corretos, têm seus direitos humanos respeitados. Se você agir corretamente, terá seus direitos garantidos. Lógica rasteira, pois uma coisa não leva necessariamente à outra. E, como se sabe, sem a garantia dos direitos individuais, cria-se instabilidade nas relações entre o Estado e os cidadãos. E, sem um pacto claramente definido entre eles, o Estado facilmente se impõe e se sobrepõe ao indivíduo.

A noção de contrato social de Rousseau já supunha que a soberania do indivíduo deve ser preservada sempre e acima de tudo. Para viver em sociedade, o cidadão renuncia à soberania, mas exclusivamente em favor da soberania do Estado, que pode garantir a soberania de todos e de cada um. Por isso, os agentes do Estado devem agir estritamente com base na Constituição e nas leis, e sempre garantindo o interesse de todos, nunca partindo da presunção de que determinados indivíduos devam ter direitos exclusivos em detrimento de outros.

Os que adotam a versão “invertida” dos direitos humanos desconsideram que esse é um tema amplo, que engloba áreas como cidadania, democracia, direitos civis, Constituição, e não apenas segurança pública, que parece ser o único viés que interessa aos que deles desdenham.

Mesmo quem presumivelmente comete um crime deve merecer tratamento humano e não pode ter seus direitos fundamentais violados. A não serem cumpridos, diversos artigos da Declaração Universal estão sendo rasgados. A dignidade daquela pessoa está sendo ignorada (art. 1º); ela está sendo tratada de forma desumana e, portanto, degradante (art. 5º); não está recebendo a proteção da lei (art. 7º); e pode ser condenada sem garantias de defesa (art. 11º).

Contrariamente a tais ideias, recente declaração do presidente Jair Bolsonaro, em programa de rádio em rede nacional, sugeriu que “o cidadão de bem está certo quando qualquer um usa da força, invade sua propriedade ou tenta te roubar um bem ou tirar tua vida, e você vai poder reagir com 10, 15, 20 ou 30 tiros e ponto final” (Rádio Jovem Pan, 8 abr. 2019). Apesar da construção obscura, não é preciso esforço para verificar a quantos artigos dos direitos humanos uma declaração como esta contraria, para além da violência que o incentivo ao uso de armas de fogo representa, ainda que fosse disparado um tiro apenas.

“Direitos dos mano

“Direito dos mano” é uma variação do primeiro slogan, igualmente preconceituosa. Afirmar que os direitos humanos são os direitos “dos mano” é fazer crítica também enviesada aos direitos universais.

“Mano” é gíria que extrapolou o sentido de irmão para se tornar um vocativo equivalente a “cara”, como nas expressões: “Olha isso, mano!”, “Fala aí, mano!”. Seu uso se consolidou na primeira década do século XXI em São Paulo e de início se restringiu às classes sociais mais pobres e marginalizadas.

Há obviamente um sentido negativo também nesse slogan. A expressão “mano” é utilizada aqui para adjetivar pessoas ou grupos que reivindicariam direitos ilegítimos ou que não lhes são devidos, o que pressupõe a existência de uma categoria de pessoas que se julga merecedora de todos os direitos. A categoria “dos mano”, que exige direitos, seria usurpadora. E a que nega tais direitos aos “mano” pertence, claro, à categoria dos que têm direitos irrestritos.

Os pensadores do Iluminismo e da Revolução Francesa, entre os quais se inclui Rousseau, esboçaram a ideia de direitos humanos como direitos universais, não restritos a quem é mais ou menos correto e direito ou mais ou menos qualquer uma das qualidades que tais trocadilhos possam supor. Se são universais, devem contemplar todos os seres humanos, sem nenhuma especificação nem exclusão.

O modelo neoliberal de desenvolvimento, que tenta a todo custo salvar do colapso o sistema capitalista, nos empurra a relativizar princípios como os de liberdade, igualdade e fraternidade, e a agir em desacordo com os valores fundamentais da humanidade.

Pensar criticamente os direitos humanos pode nos levar a rever concepções preconceituosas e a agir mais de acordo com o ideal de justiça. Afinal, como nos lembra a filósofa húngara Agnes Heller, “crer em preconceitos é cômodo porque nos protege de conflitos, porque confirma nossas ações anteriores”[1]. Serve para manter o status quo, apaziguar nossa má consciência e reafirmar certezas que contrariam até os ideais que a humanidade construiu a duras penas.

* Carlos Zanchetta é mestrando em Educação pela Universidade de Lisboa, licenciado e bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo e possui especialização em Ciências Humanas (Letras e História) pelo Centro de Extensão Universitária.

[1] HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1989. p. 47.

1 resposta a “Humanos direitos e direitos dos mano”

  1. O artigo do autor, Carlos Zanchetta, “Direitos humanos para humanos direitos” é, incrivelmente lúcido, bem escrito, e aborda algumas temáticas importantes e necessárias: direito humanos para todos, fraternidade, e, de alguma forma, o cuidado com o próximo.
    Fiquei muito impactada por essa leitura.
    Gostaria de ler outros textos do autor.

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