Maldito Gilberto Freyre

Retrato de Gilberto Freyre em preto e branco. O sociólogo está de terno e gravata, com o cabelo penteado para trás e com bigodes.
Foto: Arquivos Nacionais Brasileiros / Public domain

por Eduardo Bonzatto* e Luis Gustavo Reis**

As pessoas recorrem a soluções ideológicas quando não entendem as coisas. Se não entendem são contrárias. Somos sociedades complexas demais para termos soluções ideológicas. 

Ladislau Dowbor (1941-)

O aparecimento do neoliberalismo no Brasil a partir do início dos anos 1990 mostrou inúmeros movimentos aparentemente positivos. Um deles foi a ampliação da oferta de universidades e vagas em cursos do Ensino Superior. De modo geral, foi mais um movimento de mercantilização do ensino, que gerou grupos gigantescos de mercadores da educação, tal como Kroton. 

O aumento exponencial de vagas para diversas áreas do conhecimento demandou também uma expansão acelerada dos cursos de pós-graduação, fundamentais para formar professores que preencheriam justamente os novos espaços abertos no ensino superior. Esse processo era parte da proletarização da formação dos professores e de sua profissionalização.

Um incremento dessa magnitude, contudo, implicou em certo afrouxamento das exigências para o ingresso nos cursos de mestrado e doutorado. Os autores dessa missiva, por exemplo, são parte dessa nova leva de ingressantes, com projetos de pesquisa um tanto frágeis e qualificação no Ensino Básico bastante irregular do ponto de vista formativo.

A rigor, não havia a partir de então dispositivos excludentes muito funcionais quanto ao tipo de ingressantes na carreira. Se antes a exclusividade era para estudantes brancos, essa barreira foi sendo paulatinamente removida. Até porque novas demandas, como a obrigatoriedade do ensino de História da África, não podiam admitir a exclusão de professores negros no processo de abertura.

Juntando todos esses fatores aos dispositivos legais de empoderamento, criou-se um cenário favorável para que a diversidade pudesse compor o exíguo ambiente acadêmico e arejar sua antiguidade arqueológica. As camarilhas universitárias haviam, por tempo demais, enrijecido e limitado a formação intelectual brasileira. Eram poucas as brechas existentes fora dos círculos privilegiados de sempre. 

Ora, mas o que são as camarilhas universitárias? Basicamente, são os espaços de pós-graduação em que o professor responsável pela formação dos estudantes (que em sua maioria também serão professores) deve garantir a continuidade de seu projeto de poder, levando adiante a mesma linhagem teórica e metodológica de seu preceptor.

Esse modus operandi sempre marcou um ethos conservador e excludente, mantendo as pesquisas nas áreas afins muito endurecidas e imunes às ampliações teóricas, metodológicas e epistemológicas. Mas também manteve vitalizado o modelo colonial eurocêntrico nas redes educativas. De que forma? Por meio da hierarquia (poder) e de um centro enunciador de verdades. Se não há questionamento sobre a informação, a embalagem é imediatamente verdadeira. 

Com a expansão do ensino superior atingindo também as universidades públicas, uma quantidade maior de professores negros, ou quase negros, ou quase brancos, assumiram posições de destaque, principalmente na abertura de cursos voltados para questões étnicas, estudos africanos e afins. 

No entanto, parte desses grupos, ao invés de ampliarem a diversidade e as possibilidades críticas no enfrentamento do movimento sempre conservador e excludente da universidade, criaram nichos políticos segregacionistas e verdadeiros exércitos intelectuais de reserva, aparelhando estudantes com discursos da pior espécie de racismo. Pior espécie, vale ressaltar, pois é envolto numa lógica antirracista.  

Utilizando artifícios como “lugar de fala”, elaboraram um lema que fez sucesso imediato onde foi proposto. “Não falem de nós sem nós”, por exemplo, implicava em obrigar que os estudos sobre as questões de negritude considerassem os pesquisadores negros na pauta. Até aí tudo bem, não se questiona essa justa iniciativa. Mas nas mãos de pessoas inescrupulosas, o lema rapidamente segregou os autores não negros para um limbo e para o ostracismo. Em alguns casos, inclusive, diversos autores foram frontalmente demonizados, criando um gueto de autorreferência e de isolamento. Sobre cada tema de pesquisa, é importante sinalizar, existe uma fortuna crítica que pode e deve ser ampliada, só não pode ser ignorada em nome da segregação.

O autor mais demonizado de todo esse sórdido projeto é sem dúvida Gilberto Freyre. E as razões ficarão explícitas neste texto.

A formação de guetos intelectuais com seguidores fiéis a um discurso de hostilidades, pautados sobretudo numa história de vitimização permanente, tem por objetivo muito claro além de um justiçamento histórico compensatório, um autoelogio de seus portadores independente de suas qualidades, como se o colocando nesse lugar de justiça fosse suficiente para legitimá-lo.

Então é imperativo abordar uma história moral, de opressores e oprimidos, depurada de toda complexidade que marca qualquer período histórico, e entoar que agora os oprimidos encontraram o tempo histórico da retribuição. Só assim a história pedagógica pode impor-se num tempo de revisionismo. 

E aqui existe uma questão muito singular. Por conta de um projeto de branqueamento histórico ocorrido no pós-escravidão, a história escrita a partir daí foi uma história de dualidade: de um lado, e senhores de escravos opressores; e de outro, escravos que trabalhavam, obedeciam, apanhavam e dançavam. Nada além disso, esse reducionismo cristalizou-se no imaginário.

Assim, o preconceito racial foi sendo tramado e o negro visto como inferior, coisificado pela história da escravidão. Essa postura constituiu uma estrutura racista na sociedade, em que a educação foi sua maior divulgadora ao ensinar que os negros realmente foram inferiorizados durante a escravidão – eram “coisas”, “peças”, “incapazes de ação autonômica”, enfim, “vitimados em tempo integral”. 

Dentro dessa visão inferiorizada, esvaziada de posturas políticas, os negros idealizados só tinham duas opções: obedecer ou se rebelar. Estava implícito aí que seus descendentes herdavam também a condição de objetos históricos, erradicando sua condição inegociável de sujeitos que atuam de modo sempre complexo, ou seja, muito além do bem e do mal.

No processo de branqueamento, autores como Nina Rodrigues e Arthur Ramos estimularam essa visão dicotômica. E essa passou a ser a história oficial que ganhou parte significativa dos livros didáticos, praticamente até os dias de hoje, colocando na estrutura social o racismo. 

Importante notar que uma estrutura social racista implica em que todos, sem exceção, se tornem racistas e preconceituosos. Isso devido à visão inferiorizada que a estrutura emite e que acaba por contaminar a educação, a família, a cultura, os meios de comunicação, em suma, a sociedade como um todo. O racismo vai se insinuando na vida cotidiana e consolidando uma forma social inteira. Isso implica que também negros e não negros partilhem dessas crenças. Aí está o conceito de ideologia, ou seja, um conjunto de ideias, crenças e valores de um grupo social que contagia por meio de instituições toda sociedade.

A partir dos anos 1930, três autores se rebelaram contra essa forma superficial de ver a escravidão: Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. Os dois primeiros claramente weberianos e o terceiro marxista. Faziam assim avançar para além da dicotomia simplória de seus antecessores um aprofundamento na forma de entender o longo período da escravidão, para muito além da ideia causal de opressores e oprimidos – ainda que por vezes escorregassem em certos reducionismos.

Mas esses estudos, muito mais robustos, influenciaram centenas de pesquisadores ao longo do tempo, mas não caíram na assimilação pedagógica que se transforma nos estudos formativos e propedêuticos. Isso porque a educação escolarizada não é complexa, é pedagógica. Não aceita os estímulos ao pensamento; é exclusivamente reprodutora de ideias – quanto mais simplórias sejam essas ideias, melhor. 

A partir das décadas de 1970 e 1980, com a influência da ditadura civil-militar, historiadores importantes avançaram na lida com as complexidades da escravidão. Estudiosos como Flávio dos Santos Gomes, Sidney Chalhoub, Maria Cristina Cortez Wissenbach, Emilia Viotti da Costa, Silvia Hunold Lara, Manolo Florentino, João José Reis, Eduardo Silva, Wlamyra de Albuquerque dentre outros, nos ofereceram pesquisas sólidas quanto a enorme complexidade que trezentos anos de escravidão comportam.

Muito além de ser uma história da elite oprimindo os fracos, é uma história de sujeitos em ação e que não têm dois lados: têm muitos.

Claro que estudos como esses não facilitam a vida dos racistas. Aliás, dificultam, pois nos revelam também os artifícios dos vínculos políticos dos historiadores, dos professores, enfim, daqueles que querem que a sociedade acredite que a desigualdade é natural porque assim podem continuar ocupando seus lugares de poder e privilégio ad eternum.

Com o surgimento dos nichos de estudos sobre os negros em meio a um modelo radicalmente desigual, parece evidente que seus gestores, negros, quase negros, quase brancos, optassem por extirpar estudos complexos da grade de formação de seus exércitos intelectuais de reserva e os obrigasse, pautados pelo discurso justicialista, a depurar toda fortuna crítica. No lugar, privilegiou-se exclusivamente autores negros contemporâneos, cujo pensamento é similar e autoriza igualmente a visão de uma sociedade segregada.

O símbolo desse expurgo é Gilberto Freyre. Mas não só, ele apenas simboliza a grandiosidade da ignorância dessa gente cuja intenção é exclusivamente segregar, ainda que o discurso pareça “nobre”.

O livro que para eles deve ser queimado é “Casa Grande e Senzala”, publicado em 1933. Como não leem, se focaram exclusivamente numa parte, acusando a obra de amenizar a escravidão quando considera o estupro doméstico de escravas por senhores não tão cruéis. Isso porque o autor considerava a possibilidade do desejo entre os grupos, algo completamente refutado por certos ortodoxos atualmente. 

Estupro deve ser repudiado em qualquer circunstância, ponto. Ocorre que o desejo entre senhores e escravos é plausível e quem diz isso não é apenas Freire, mas também Lélia Gonzalez, uma das maiores intelectuais negras do século XX. Ao discutir sexualidade e raça entre negras e brancos no Brasil, fala sobre o desejo ao criticar Caio Prado Júnior, que entendia que o “amor da senzala” obstruía o “milagre do amor” no período escravista, pois baseava-se “apenas no desejo, um instinto tão simples”:

Quanto à negativa do “seu” Caio Prado Júnior, infelizmente, a gente sabe o que ele está afirmando esquecidamente: o amor da senzala realizou o milagre da neurose brasileira, graças a essa coisa simplérrima que é o desejo. Tão simples que Freud passou a vida toda escrevendo sobre ela (talvez porque não tivesse o que fazer, né Lacan?). Definitivamente, Caio Prado Júnior “detesta” nossa gente.9[1]

Para Gonzalez, é preciso compreender que as reflexões sobre dominação devem articular raça e gênero, mas também englobar os paradoxos do desejo. Diz ainda que o racismo brasileiro é resultado de formação reativa ao desejo recalcado e não uma realidade intransponível. Para finalizar, ainda destaca que a mulher negra não está exclusivamente identificada à posição de sujeição, seja ela social, racial ou sexual, já que é a base fundamental da cultura brasileira. 

Mas nada disso é considerado para certos grupos oportunistas, incluindo professores inescrupulosos, mais ocupados em criar verdadeiros currais políticos intelectuais. Esses patrulheiros do bom comportamento, que condenam relacionamentos de negros, quase negros, quase brancos com brancos, quase brancos, acusando-os de “palmitagem”. E o que vem a ser isso, afinal? Um termo usado para se referir a homens negros, quase negros, que se relacionam como mulheres brancas, quase brancas.

Não raro, nos deparamos com declarações de membros desses exércitos que por razões íntimas preferiam namorar com brancos, quase brancos, mas que teriam de mudar suas escolhas para continuarem aceitos nos currais ideológicos universitários. Até porque é justamente nas universidades que tais discursos acham terreno fértil.  

Nos espaços acadêmicos, inclusive, os novos pesquisadores acabam por normatizar os procedimentos segregacionistas. É exatamente assim que se consolida uma nova ordem social, pautada pela justiça daqueles que supostamente ocupavam um lugar inferiorizado numa sociedade estruturalmente racista. Destarte, cria-se uma forma legítima, socialmente legítima, de se ver e de ver os outros, tornando o lugar de fala uma instituição e um valor por si mesmo. Mas para fundamentar tudo isso, é necessário apagar o passado e fazer valer uma visão de mundo dicotômica e linear entre bons e maus, vítimas e algozes, vilões e heróis.

É preciso fazer desaparecer o humano e se colocar sempre naquele lugar em que esses pesquisadores divulgam: o lugar da submissão, do sofrimento permanente, da inação, da “coisificação” em estado puro. 

É necessário reconhecer também que tais pesquisadores, diga-se logo, pertencentes à classe média, que mantém ou mantiveram uma vida muito distante dos horrores que divulgam, embora revelem sempre sua aproximação do mundo genocida étnico (que de fato existe), estão poucos preocupados em uma ação realmente revolucionária. Querem palanques, seguidores, postos de privilégio nesta sociedade intrinsecamente desigual. Não estão preocupados em destruir o sistema injusto que vivemos, pelo contrário, azeitam o neoliberalismo almejando consumo e estimulam a segregação. Quando chamam os negros de “irmãos”, por exemplo, não gostariam de uma irmandade revolucionária que extirpasse a classe média, da qual pertencem, e que seus privilégios fossem abolidos.

Ao estimular a divisão da sociedade entre negros e brancos, levam adiante um projeto de segregação racial bastante apreciado pelos racistas do início do século XX, além fazerem muito bem o jogo do dividir para conquistar que tanto aprazem as elites.

Encerramos com uma fábula de Esopo, traduzida livremente, chamada “Lobos e cães em guerra”:

Certa vez, quando os lobos e os cães estavam em pé de guerra, um cão grego eleito o general dos caninos tentava adiar o combate, ao passo que os lobos faziam ameaças terríveis. Então, o cão disse aos lobos: “sabem por que razão eu vou com calma? É porque preciso deliberar com cautela. Vocês pertencem a uma só raça e são todos de uma só cor, enquanto nós temos hábitos diversos e nos ufanamos de nossas terras. Além disso, nossa cor não é a mesma e única; ao contrário, uns são pretos, outros avermelhados e outros ainda brancos e cinzentos. E como posso conduzi-los à guerra se eles são tão discordantes e desiguais em tudo?

* Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). 

* Luis Gustavo Reis é professor e editor de livros didáticos. 

Referência

[1]GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira, p. 234. Apresentado na Reunião do Grupo de Trabalho “Temas e Problemas da População Negra no Brasil”, IV Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 29 a 31 de Outubro de 1980. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4130749/mod_resource/content/1/Gonzalez.Lelia%281983-original%29.Racismo%20e%20sexismo%20na%20cultura%20brasileira_1983.pdf>. Acesso em: 24 out. 2020. (grifos originais)

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