A fada e a bruxa II

Imagem de luas em diversos estado.
Foto: ©Mark Tegethoff on Unsplash

por Mariana Luppi*


No centro da cidade acinzentada, às margens de um viaduto alto, morava uma bruxa – ou pelo menos assim a chamavam as crianças que moravam na rua sob a ponte, sempre que ela passava. Habitava uma quitinete minúscula, na companhia de duas gatas todas pretas e caminhava em seus coturnos gastos todo dia até seu pequeno escritório na praça da Sé.

Lá, sob pilhas de burocracias, ajudava mães solteiras, desempregados, ex-presos e viciados, a conseguir um ou outro direito que o juiz togado do fórum próximo via como favor. Reduzia ao mínimo os honorários, e no almoço esquentava no micro-ondas alguma sobra dos jantares insossos feitos às pressas. À tardinha voltava pelo mesmo caminho, às vezes com uma lata de cerveja, olhando os prédios e pitando um cigarro.

Dava moedas aos pedintes, e as roupas mais usadas. Conversava com os músicos e com as estátuas vivas, interessada nas técnicas e performances. Parava para ver os mágicos, para responder a pesquisas, pegava panfletos e olhava as multicoloridas vitrines, sempre chocada com os preços. Quando chovia, não abria o guarda-chuva, ficava admirando as multidões correndo para se proteger enquanto mantinha-se no mesmo passo tranquilo até em casa. Chegava depois de anoitecer, molhava as plantas, alimentava as gatas, cozia legumes ou um macarrão sem temperos, e geralmente fumava até adormecer.

Teria vivido a vida toda assim, pois que a cidade tinha seu próprio tempo e a levava com pressa de um lugar ao outro, da cama ao chuveiro frio, ao escritório apertado, ao fórum poeirento (e só então tinha que tirar os coturnos e vestir sapatilhas), e então, no ritmo dos fins de tarde, atravessando o trânsito e sob a música das buzinas, de volta para seu canto e sua cama.

Teria vivido assim a vida toda se numa dessas tardes, em que digitava com força alguma peça no computador ultrapassado, não tivesse sentido seus dedos começarem a subir e descer num ritmo estranho, não tivesse ouvido uma música triste e lenta, muito mais perto que o oboísta que costumava tocar sob a janela às quintas-feiras. Abriu de supetão a porta de compensado e deu com uma fada – pelo menos assim lhe pareceu que deveriam chamá-la – sentada nas escadas do átrio, torcida sobre o violão, mexendo os dedos vagarosamente. A bruxa sentiu um aperto no peito, que a outra vinha com sandálias gastas, as roupas puídas, a brancura da exaustão. Quando a fada subiu os olhos, de um verde baço e estranho, a bruxa sentiu o coração roubado e resistiu:

— Que fazes aqui?

— Vim para a cidade cuidar dum irmão doente – tinha sotaque do agreste, arrastado e doce – ele morreu sem deixar nada, agora não tenho como voltar.

A voz acelerou o pulso da bruxa, e ela não entendia bem por quê. Quis dizer que não podia ajudar quem não tinha nada, que trabalhava para sobreviver, que não havia o que fazer, que ela se virasse na cidade.

Mas ela sabia que ninguém se virava na cidade, sabia que havia o que fazer, que nunca tinha se importado em ajudar de graça. Ia fazer um pedido, quem sabe a prefeitura ajudava.

Entrou de volta no escritório sem dizer nada, esperando ser seguida, sentou-se atrás dos papéis e foi fazendo perguntas e pedindo os poucos documentos que a fada carregava. Enquanto digitava, olhava de soslaio os cachos dourados que reluziam na voz fraca, os cílios longos e o rosto ovalado, um pouco sujo do pó urbano – achou-a linda como nada na cidade.

A fada tirou os documentos da bolsa inchada e quando subiu os olhos para a bruxa achou-a forte, por isso bela, ficou a olhar seus cabelos longos escuros enquanto batia de leve no violão gasto.

— E onde estás ficando?

— Fui expulsa do quarto que meu irmão alugava hoje.

— Oh…

A bruxa disse mais nada até enviar meia dúzia de e-mails, desligar o computador e mostrar à outra o caminho da saída. Estancou na entrada do prédio e suspirou.

— Posso te pagar uma cerveja?

A fada sorriu, e a bruxa achou que nunca tinha visto um sorriso antes daquele, porque sob os olhos verdes de repente fez sorrir todo o entardecer. Sentaram-se sob um toldo esverdeado, em mesas na calçada, e enquanto bebiam a fada tocava modas antigas e cantava com uma tristeza que combinava com a cidade. Saíram já com a noite e as mentes altas, e a bruxa levou-a para casa como se fosse natural. Deitou-a no colchão gasto ao lado do seu, e viu-a adormecer exausta ainda com as mãos nas cordas do violão. Andou às voltas nos espaços do pequeno apartamento, alimentou as gatas e viu-as irem deitar-se aos pés da visitante. Demorou a adormecer com uma sensação de saudade não sabia do quê.

Na manhã seguinte, foi acordada com uma música alegre. Sentiu cheiro de café, e viu que a fada tomara banho, servira a bebida e agora tocava de leve para despertá-la. Foi a primeira manhã em anos em que não teve pressa. Bebeu olhando a fada tocar, depois fez a ambas sanduíches, ofereceu-lhe sandálias menos gastas e caminharam, a fada com o instrumento a tiracolo, de novo para a Sé.

Então a bruxa, para quem o tempo sempre corria marcado pelos sinos da matriz e pelos horários marcados das audiências, começou a não sentir o tempo nas horas presas no escritório. A fada se despedia todo dia na porta do edifício e ia tocar logo ali ao lado, então a bruxa passava toda a manhã e toda tarde ouvindo sua música e sua voz. Se distraía dos clientes, esquecia do que fazia e, às vezes, como nunca na vida, cantarolava também.

Ia chamá-la lá embaixo para comerem juntas os restos das jantas nos almoços, e quando saía do escritório pegava duas latas de cerveja para caminharem juntas para casa.

A fada parecia uma criança na cidade, e a bruxa, que vivia há anos ali e há anos olhava tudo muito mais que a multidão apressada, surpreendeu-se que nunca tinha reparado nessa ou em outra balaustrada, nas cores de tal ou qual prédio, no rosto das estátuas e nas cores dos grafites. Vez em outra entravam em alguma igreja só para ver os afrescos, e a fada parecia minúscula olhando para cima entre vitrais e pilastras.

A bruxa, que nunca precisou de ninguém, começou a sentir falta da fada quando ela resolvia ir tocar na praça da república, às quintas, para não atrapalhar o oboísta. E ia procurá-la entre as fontes com medo de se perderem – ela que nunca tivera medo de nada. E quando a via altiva tocando, recebendo uma moeda eventual do povo que saía do metrô, ficava de longe alguns minutos sem pressa de parar de olhar. E a bruxa que sempre fora insone, agora noite após noite dormia tranquila da música, e sonhava flutuar.

A fada também se estranhava, sentia um frio estranho quando a bruxa dormia, uma solidão que só é da cidade, e ela, que nunca teve problemas para adormecer, girava na cama por horas. Ainda acordava cedo, fazia o café, e o frio só passava quando a bruxa despertava sob o som de suas notas.  Na rua só cantava músicas tristes, e ficava olhando para cima de vez em quando, só para ver se a bruxa a espiava. Aí quando sentavam num bar, de costume às sextas-feiras, a música se alegrava e ela ficava olhando a bruxa tentar balançar-se nos ritmos latinos.

Uma tarde a bruxa preparava-se para partir do escritório, e fada subiu e ficou esperando, tocando de leve as cordas do violão, na soleira da porta. Checando uma última vez o e-mail, percebeu que tinha recebido uma mensagem da prefeitura – podiam pagar a passagem, bastava ir ao centro de atendimento, com alguns documentos, e pegar o bilhete na hora.

O coração da bruxa como que parou e depois acelerou muito, coçou as têmporas, depois roeu de leve os cantos das unhas e apertou os lábios até avermelharem. A fada da porta olhava preocupada.

— O que houve?

E a bruxa, que nunca deixava de exultar quando conseguia resolver os problemas de alguém, agora não queria admitir. Com a testa baixa e a voz leve, apenas suspirou:

— Consegui sua passagem…

A fada abriu um pouco a boca, mas nada disse. Caminharam juntas para casa, dessa vez em silêncio, e o coração da bruxa ia pesando conforme iam também pesando lágrimas nos cílios de ambas. A canção da fada aquela noite foi tristíssima e a bruxa adormeceu, sonhando que caía.

Na manhã seguinte acordou num susto, e se viu atrasada e sozinha. A fada deixara a porta destrancada e sumira. Nesse dia a bruxa não foi trabalhar, não viu a cidade, passou o tempo todo em seu colchão, fumando e acarinhando as gatas que se agitavam de um lado para o outro. Passou horas sem conseguir respirar direito, e ao fechar os olhos via a fada, seu sorriso onde cabia o mundo. Não viu o tempo, ou antes sentiu-se fora dele, até o sol começar a se pôr.

Então, de um salto e com a pressa de quem não suporta mais, saiu… Não olhou a cidade, o viaduto, seus arcos, os pedintes e as lojas. Não olhou para atravessar as ruas e quase foi atropelada meia dúzia de vezes. Mas quando alcançou a praça da república soube que tinha chegado, porque o coração pareceu voltar a bater quando viu a fada ali, tocando seu instrumento com raiva e lágrimas.

Conseguiu pescar seus olhos na multidão por um instante antes de eles fixarem-se no chão. A bruxa aproximou-se ansiosa.

— Por que foste?

— Não é o que querias?

A bruxa soluçou arregalando os olhos.

— Não queria nunca mais estar sozinha.

— Mas então por que arranjaste a passagem?

— Não é o que querias?

A fada baixou ainda uma vez o olhar brilhante.

— Não queria te deixar.

A bruxa gargalhou e de repente a fada achou que nunca tinha ouvido uma risada, subiu os olhos molhados. A bruxa achegou-se hesitante, abraçou-a e fechou seus lábios nos dela, num beijo longo que a cidade toda estava apressada demais para reparar.

*Mariana Luppi, comunista desde os 14 anos, atualmente militante feminista e ecossocialista, formou-se em filosofia e hoje escreve, estuda e milita nos intervalos do seu trabalho burocrático kafkiano.

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