A filósofa e todos os saberes

Foto da filósofa Vandana Shiva, vestida de preto com um chale com detalhes verdes, sentada, entregando o seu livro autografado a alguém durante cerimônia de autógrafos, no lançamento do livro.
Foto: boellstiftung, CC BY-SA 2.0 <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0>, 
via Wikimedia Commons

por Mariana Luppi*

Enquanto feministas, muitas vezes nos deparamos com uma tarefa quase arqueológica de recuperar dos arquivos empoeirados da história as mulheres que fizeram a diferença, mas foram esquecidas em nome da narrativa patriarcal. A primeira movimentação feminista de que me lembro durante minha graduação em filosofia foi justamente uma exposição sobre mulheres filósofas, de Hipatia de Alexandria a Judith Butler. Colamos nos murais mais de vinte imagens de pensadoras que eram sumariamente ignoradas em nossas aulas.

Também o esforço de recuperar as mulheres cientistas é, nesse sentido, fundamental. Trata-se de um lembrete permanente de que nosso conhecimento nas várias ciências é produto de alguns séculos e de diferentes sujeitos, inclusive mulheres repetidamente apagadas dos registros da história da ciência, seja por proibições – de publicar, de estudar – seja por apropriações de seus trabalhos por homens, em vida ou postumamente.

Segue havendo, ainda hoje, uma divisão de trabalho que afasta as mulheres dos campos mais prestigiados da produção de conhecimento, entre os quais estão muitas das ciências, principalmente as relacionadas a desenvolvimentos tecnológicos. Por outro lado, seguem sendo entendidos como trabalhos “femininos” os trabalhos menos valorizados em nossa sociedade, os trabalhos de cuidado, feitos em grande medida gratuitamente no seio familiar.

Ursula K. Le Guin, escritora estadunidense, brinca com os preconceitos correntes em seus romances de ficção científica. Em “The Dispossessed”, de 1974, Shevek, físico originário de um planeta com organização social anarquista (Anarres), e um médico oriundo de um planeta onde há propriedade e Estado (Urras) têm dificuldade em dialogar devido às diferenças culturais marcantes. Entre elas está o fato de que o médico não conseguia conceber que mulheres pudessem, em Anarres, estudar física, por não terem o cérebro suficientemente “matemático”. Shevek, porém, havia sido treinado na física por duas professoras, e não consegue imaginar as consequências da desigualdade de gênero na vida sexual dos Urrastis.[1]

Esse argumento da racionalidade “matemática” é repetido sob diversas formas para desestimular as mulheres a se dedicarem a áreas de conhecimento consideradas mais “lógicas”, o que inclui desde várias ciências até o xadrez, em oposição às áreas “femininas” das humanidades, por exemplo.  Ficou conhecido o experimento em que crianças tiveram suas provas corrigidas às cegas, denunciando como há a tendência de dar notas maiores em matemática e ciência para os meninos.[2]

Mesmo dentro de produções que poderiam ser consideradas “emotivas”, em oposição a “racionais”, as mulheres são apagadas, e os homens seguem sendo mais valorizados. Nossa colega Ana Paula Girardi, em texto de 2017, comenta o fenômeno nas artes, concluindo que “Se há uma dificuldade em se reconhecer grandes artistas mulheres antes do século XX, isso não representa uma incapacidade do gênero feminino de produzir grandes obras, mas, sim, um reflexo da ausência arbitrária das mulheres do ensino formal, impossibilitando tantas potenciais grandes artistas de existirem, e a desvalorização dos campos artísticos predominantemente femininos.”[3]

Esse último elemento é interessante para voltarmos à questão das mulheres na ciência. Quando Girardi fala de “desvalorização de campos artísticos predominantemente femininos”, está se referindo às artes têxteis, por exemplo, às quais eram consideradas menores em relação à pintura e à escultura, por se aproximarem mais do artesanato, do qual a “alta arte” se diferenciou em sua consolidação moderna.

Da mesma forma, o processo da ascensão da ciência moderna significou o crescente privilégio de uma forma de conhecimento sobre todas as outras, que haviam se desenvolvido por milênios antes da consolidação do projeto científico.

Aqui cabem importantíssimos parênteses. Vivemos em uma época de negacionismo científico, uma época em que conclusões comprovadas são questionadas com base em discursos de poder, em ignorância e empirismo. Isso não pode nos impedir, no entanto, de refletir sobre o projeto científico, sobre seus valores e sua relação com os valores sociais. A ciência tem uma história, que passa por capítulos tenebrosos, como a eugenia, e capítulos ainda a serem desmascarados, como a revolução verde. Tratar a ciência como religião monoteísta, como portadora única de uma verdade não-histórica e inquestionável, facilita o trabalho dos negacionistas: entre a ciência e outros monoteísmos, podemos imaginar o que eles vão escolher.

A ciência e seu método são objetos de estudo de uma disciplina particular na filosofia, a Filosofia da Ciência. Muitos dos filósofos e filósofas da ciência foram ou são também cientistas, e voltaram-se para a filosofia para pensar os limites de sua própria atividade científica. Entre os primeiros autores que fizeram reflexões no sentido da filosofia da ciência está Galileu Galilei, para o qual ficou evidente a influência do ponto de observação para as conclusões astronômicas. Na época de Galilei, no entanto, ainda não havia ciência no sentido moderno, nem sua divisão por disciplinas. Apesar disso, já o papel de Galileu foi o de crítico em relação aos conhecimentos estabelecidos na época – e não apenas dogmas eclesiásticos, mas modelos astronômicos matemáticos. Esse papel crítico dos filósofos e filósofas da ciência segue até hoje.

Vandana Shiva é originalmente física, mas tem dedicado as últimas décadas à crítica do modelo reducionista de ciência que destrói a natureza nos países colonizados. Em seu livro “Monoculturas da Mente”, a filósofa reflete sobre o paradigma que trata a natureza como mera fornecedora de produtos e que, portanto, para aumentar a eficiência, defende modelos de monocultura agrícola. Trata-se de um paradigma que ignora que as vegetações locais têm relações não apenas com a cultura dos povos, mas com seu modo de vida, alimentação, preservação da água e do solo, produção de forragem para animais. A substituição de cobertura vegetal original por espécies como eucalipto, a produção de sementes  geneticamente alteradas, que não podem ser usadas para plantar depois de colhidas, o uso de fertilizantes artificiais e agrotóxicos, a poda parcial de florestas (que na prática destrói toda a cobertura vegetal), são todos elementos carimbados pela ciência oficial, que tem, entre seus valores, o “controle” sobre a natureza. Essa ideia de controle, no entanto, não é um produto puro do método científico, mas na verdade é uma ideologia que o precede, como o racismo precedia a formulação da “ciência” eugenista.

As ideias de “controle sobre a natureza” e de “progresso” que parecem preceder não só a ciência e a tecnologia da revolução verde, mas também muito da produção da ciência moderna, têm uma origem na necessidade capitalista de domínio sobre territórios e de produção voltada para o lucro. Para isso, é também importante que uma forma de conhecimento seja privilegiada sobre todas as outras, que a diversidade da cultura humana seja esmagada pelo discurso autoritário da ciência reducionista – que atingiu seu auge no positivismo, mas que segue sendo acionada como discurso de poder e segue ignorando saberes locais.

Novamente, não se trata de jogar a ciência fora – suas conquistas consolidadas estão garantidas pela retidão de seus métodos, como a experimentação controlada. Ainda assim, os campos mais estudados (e mais bem pagos) e as tecnologias avançadas e aplicadas, sempre estão submetidas a valores externos a ela, aos poderes sociais do capital. De certa forma, fazer essa crítica à ciência é uma forma de lutar pela ciência, contra sua transformação numa carcaça a ser manipulada pelas necessidades imediatistas no mercado.

Mary Shelley, em seu “Frankenstein, ou o Prometeu moderno”, descreve a “febre” do Dr. Frankestein em seus estudos científicos. Muito sagazmente, ela mostra como sua dedicação exclusiva a seu projeto, ignorando sua vida doméstica (o ambiente do “feminino”), leva à não percepção das consequências de sua criação. A falta de responsabilidade ética na produção científica aparece no romance como consequência direta de um trabalho intelectual unilateral e que cega para todas as outras áreas da vida.[4]

Silvia Federici descreve, em seu livro “O Calibã e a bruxa”, o processo pelo qual as mulheres que tinham poder nas comunidades medievais foram exterminadas e tiveram seus conhecimentos desvalorizados[5]. Da mesma forma, Vandana Shiva menciona povos indianos com conhecimentos milenares sobre plantas que foram ignorados no cálculo de produtividade de suas florestas. Quanto conhecimento humano, quantos saberes, não foram enterrados junto com os milhares de povos originários exterminados, escravizados e catequizados na América e na África? E hoje, quando nos voltamos a esses povos, o que eles produzem é valorizado no máximo como um exotismo, uma curiosidade, e é plenamente ignorado pelas “ciências”, pelo menos até poder ser lucrativo (e então ser patenteado à sua revelia).

Vandana Shiva não defende, é claro, o fim das ciências modernas – ela defende uma participação dos saberes tradicionais na constituição dessas ciências. De certa forma, a denúncia que ela faz do reducionismo da ciência diz muito sobre a falta de mulheres em diversas áreas científicas: a ciência se constitui como mais um espaço de poder que os homens não vão dividir.

Nas culturas tradicionais, no entanto, a participação das mulheres na produção do conhecimento é marcante. Há mulheres pajés, há erveiras, benzedeiras, anciãs. Também os conhecimentos valorizados nessas culturas tendem a ser os relativos à vida e sobrevivência da comunidade – não ao controle ou domínio sobre a natureza, mas à convivência harmoniosa com ela. Esses saberes, não são, evidentemente, científicos, segundo os paradigmas ocidentais. A questão não seria, no entanto, transformá-los em conhecimentos científicos (tabulados e matematizados, separados das culturas que os originaram), mas valorizá-los enquanto conhecimentos, garantindo o diálogo entre a ciência e os demais saberes. Acima de tudo, entender os saberes e produções humanas como diversos – como são diversas as pessoas e suas habilidades, e os territórios que elas habitam.

As mulheres sempre tiveram um papel essencial na produção dos múltiplos conhecimentos humanos, mas foram muito apagadas da história dessa produção de saber. Por um lado, as feministas devem fazer aquele trabalho arqueológico de reescrever uma história da ciência em que as mulheres tenham o destaque merecido. Por outro, temos também que lembrar e cultivar toda a diversidade de conhecimentos – cuja produção muitas vezes foi e é protagonizada por mulheres – que foi apagada em prol de um modelo colonizador e patriarcal.

*Mariana Luppi, comunista desde os 14 anos, atualmente militante feminista e ecossocialista, formou-se em filosofia e hoje escreve, estuda e milita nos intervalos do seu trabalho burocrático kafkiano.

[1]LE GUIN, Ursula K. Os despossuídos. São Paulo: Aleph, 2019.

[2]COMO o preconceito prejudica o estudo de matemática por meninas. EBC, 6 jul. 2015. Disponível em: https://memoria.ebc.com.br/infantil/para-pais/2015/07/como-o-preconceito-prejudica-o-estudo-da-matematica-por-meninas. Acesso em: 5 jul. 2021.

[3]GIRARDI, Ana Paula. O anônimo é uma mulher. Aluvião, n. 2, jun/2017. Disponível em: https://www.revistaaluviao.com.br/o-anonimo-e-uma-mulher/. Acesso em: 5 jul. 2021.

[4]SHELLEY, Mary. Frankenstein. São Paulo: Hedra, 2013

[5]FEDERICI, Silvia. O Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.

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