Muito prazer, João Tordo


por Nathalia Campos*


Em nossos dias, a longevidade do interesse pela tarefa da pesquisa, até os limites do sobre-humano, impõe-se a todo aquele que mira a carreira acadêmica. E os odisseicos trabalhos de mestrado e doutorado, que antes coroavam uma trajetória profissional já estabelecida e a excelência em uma área de conhecimento, foram rebaixados a requisitos mínimos para apenas se dizer iniciante.

A mão de obra de mestres e doutores, uma vez absorvida no ensino superior, continua a se confrontar com a exigência implacável das agências de fomento por um produtivismo que pouco a pouco vai matando a espontaneidade da libido pela cultura.1 Com ela, vão-se pelo ralo o ímpeto desbravador e aquela magia de sermos surpreendidos por alguma coisa quando estamos fora da disposição condicionada da procura e da análise objetal.

Quando se trata de literatura e de arte, o prejuízo é, por razões óbvias, ainda maior. Espantosamente, não faltam defensores dessa permanente vigília, que vai nos subtraindo a liberdade e a capacidade de sonho, fascínio e estranhamento, seja em nome da conformação às exigências burocráticas ou de uma recusa da paixão e do amadorismo, móveis alegadamente enganosos do interesse intelectual.

O fato de me colocar na contracorrente dessa mentalidade vem alimentando em mim, à medida que o tempo passa, um desejo irreprimível de soltar o verbo. E não é pelo prazer de ser a dissonância, como apetece à tanta gente em uma época em que “todo mundo tem razão”. Sair em defesa da legitimidade do afeto por meus objetos de pesquisa (entendendo-se o afeto não apenas como amor, mas também como afecção), sem que o “amador se torne a coisa amada”2 e que a perícia e o distanciamento crítico sejam postos de lado, é, como eu disse, fruto de uma experiência pessoal, que não pretende fazer devotos ou fechar a questão.

Por isso, resolvi compartilhar, nestas breves linhas, uma experiência genuína de encontro com um autor: João Tordo. Trata-se da experiência de alguém que não procurava no céu uma estrela, mas que estava aberta aos acontecimentos da noite.

Ensaio uma entrada biográfica: “João Tordo é um jovem escritor português com dez livros publicados, filósofo, roteirista, baixista de jazz…” Outra, por força do (mau) hábito, mais acadêmica: “a narrativa contemporânea de João Tordo afina-se com a dos romances policiais, com inclinações para o detetivesco, entre Paul Auster, Edgar Allan Poe e Conan Doyle, além de estar contaminada de referências do cinema noir…” E ainda uma última, apelando a salamaleques para recomendar a leitura de um autor pouco conhecido do público brasileiro: “João Tordo é um romancista prolífico, traduzido para diversas línguas, vencedor do Prêmio Literário José Saramago em 2009 por As três vidas, finalista do Prêmio Oceanos em 2011 etc. etc.” Então me lembro de que a minha inflexão tinha o objetivo de ser despretensiosa sem perder a acuidade crítica; sóbria sem deixar de ser subjetiva; justa sem bajulação…

Sim, que eu fale do encontro: no ano de 2012, quando participava de um evento acadêmico em uma cidade do interior de Minas, fui assistir a uma dessas tantas sessões de comunicação que, no meio acadêmico, infelizmente mais se prestam a engordar o “cão” Lattes do que a partilhar saber/sabor e experiência. Sem grande entusiasmo, percorri a programação, até que meus olhos se detiveram no título de um trabalho sobre um autor com sobrenome de pássaro: “Tordo”. Para mim, que sempre acreditei na ascendência de um nome sobre os rumos de uma existência, pensei romanticamente em Tordo como alguém predestinado ao canto.

Ouvi com atenção a pesquisadora, que, informalmente, como uma criança que espalha as peças de um brinquedo desmontado pelo chão, especulava sobre arquivo, história e memória numa chave benjaminiana. Mas o que mais prendia a atenção da modesta plateia era o próprio livro de Tordo em análise – As três vidas –, que ela folheava repetidamente não para resgatar esta ou aquela passagem, nem mesmo para mostrar a edição ao público, mas como um cego que quisesse correr de novo e de novo os dedos sobre um rosto que aprendera a amar.

Ela fazia o compacto do enredo do romance, às vezes pintando algumas cenas com mais detalhe: “Um jovem, acossado por fantasmas de um passado nem tão remoto, faz um relato em primeira pessoa para passar a limpo a memória mal contada do antigo patrão…” Uma maneira simples de situar uma narrativa que sabe encomendar a empatia e a adesão do leitor, valendo-se daquela retórica da urgência própria dos condenados que aguardam execução nas narrativas policiais de feitio poeano (à diferença de que, nesse caso, a vida – ou a pós-vida – já se revelou a própria condenação): ao mesmo tempo expiatória e autoindulgente, vívida e lacunar, voluntária e involuntária, autocentrada e emprestada à memória de outros.

Alguns meses depois, finalmente comprei o livro. À medida que lia, crescia aquele prazer (que todos conhecemos) da devoração solitária de um romance aguardado. Só que, com igual força, erguia-se uma onda que lavava todos os vestígios da leitura, deixando-me atordoada e oca, com uma impressão tão difusa do texto que, naquele momento, eu não saberia articular sequer do que tratava a narrativa.

Na superfície, havia o prazer da história absorvente e irresistível. Um pouco abaixo dela, despontava a tensão, que me fazia apertar os maxilares como se assim eu pudesse reter algo da matéria escorregadia do texto. Era físico. O palco era o corpo. A onda vinha em minha direção, me atingia e se refazia em seu próprio interior. Era o texto, que me tragava e repelia. Após algumas levantadas de cabeça em busca de ar, compreendi que eu experimentava aquilo que Roland Barthes em O prazer do texto (1973) descreve como “gozo”, que seria uma espécie de prazer permeado de tensão e desconforto.

Sim, As três vidas era também um texto de gozo. Por isso, à partida, ele era suspenso, rebelava-se contra a camisa-de-força das lógicas e das garantias, perguntava mais do que respondia, levava-me ao desamparo, à vertigem, ao abismo. O leitor que escolhe este texto coloca-se à deriva. Ficar a ver navios é um risco concreto, tal como é bordejar as margens da loucura e da própria morte. Navegar não é preciso.

Como anunciei, o afeto por um texto/autor é um elo que, para além de sedução, amor e pertencimento, também pode se fazer de dor, perplexidade e desabrigo. Encontro-me para me perder. O texto me acomete; eu o amo; ele me modifica. Acometo o texto; ele me ama; eu o modifico.

Amo um texto que segue me devolvendo à beira-mar, como a ressaca devolve o surfista. Estou fulminada na praia, de onde, com prazer, vos escrevo.

* Nathalia Campos é poeta e doutoranda em Estudos Literários pela UFMG. Desenvolve pesquisa sobre João Tordo no tema “ficções do arquivo”.

Referências

BARTHES, Roland. O prazer do texto. 4. ed. Trad. J. Ginsburg. São Paulo: Perspectiva, 2004. (Coleção Elos).

CAMÕES, Luís Vaz de. Transforma-se o amador na cousa amada. In: _______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005. v. II. p. 6.

RIBEIRO, Renato Janine. Não há pior inimigo do conhecimento que a terra firme. Tempo social (Revista de Sociologia da USP), São Paulo, v. 11. n. 1, 1999. Disponível em: <www.revistas.usp.br/ts/article/view/12300>. Acesso em: 13 dez. 2017.

TORDO, João.  As três vidas. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2010. (Coleção Ponta de Lança).

  1. A esse propósito, ver a ácida-lúcida reflexão de Renato Janine Ribeiro em “Não há pior inimigo do conhecimento que a terra firme” (1999).
  2. Famoso verso de Camões: “Transforma-se o amador na cousa amada” (2005, p. 6).

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