O que sustenta a leveza?

Imagem de uma pena.
Imagem: Foto de Daniele Levis Pelusi na Unsplash

 

por Carlos Zanchetta*

Leve, como leve pluma
Muito leve, leve pousa
Na simples e suave coisa
Suave, coisa nenhuma […]
Sombra, silêncio ou espuma 

(Amor, Secos e Molhados,1973)

 

No romance A insustentável leveza do ser (1982), do tcheco Milan Kundera, que marcou a literatura mundial do século passado, são poucas as referências diretas à ideia de leveza do ser e de por que ela seria insustentável. Uma delas está logo no início, quando os personagens ainda não foram apresentados, e o narrador afirma: “[…] a ausência total de fardo leva o ser humano a se tornar mais leve do que o ar, leva-o a voar, a se distanciar da terra, do ser terrestre, a se tornar semirreal, e leva seus movimentos a ser tão livres como insignificantes.” (KUNDERA, 2017, p. 11).

Próximo da metade da obra há outra referência direta ao tema, mas ao oposto da ideia de leveza: “O drama de uma vida sempre pode ser explicado pela metáfora do peso. Dizemos que temos um fardo nos ombros. Carregamos esse fardo, que suportamos ou não, lutamos com ele, perdemos ou ganhamos.” (KUNDERA, 2017, p. 134).

Ao longo da história que Milan Kundera compõe, que se passa em Praga na virada das décadas de 1960-70, os personagens apenas vivenciam a leveza ou o fardo de viver, de acordo com as características socioemocionais que possuem e as situações que vivem. Assim, a artista plástica Sabina é apresentada como tendo um estilo leve de viver, uma relação suave com o fazer artístico, o próprio corpo e a sexualidade, enquanto Tereza, a atendente de lanchonete que se casará com o protagonista, é o contraponto dela, e está associada ao que é grave e pesado. Tomas, o médico protagonista, busca viver com suavidade, observa essa qualidade em si e nos outros. É o único que reflete sobre o que é viver levemente, se apenas a leveza é positiva, mas não o faz filosoficamente, mas de modo prático. 

É o narrador quem pensa propriamente as questões relacionadas ao título do romance. Apropria-se das ideias de dois filósofos para introduzir o tema da leveza do ser: a teoria dos opostos de Parmênides e a ideia de eterno retorno de Nietzsche, contextualizando um pouco a ideia de leveza.

Do filósofo da antiga Grécia, extrai a ideia de que todos os seres são formados por polos opostos: claro ou escuro, masculino ou feminino, leve ou pesado e assim por diante. As oposições parecem todas válidas, afirma ele, menos a de leve ou pesado. Por quê? Porque, na busca pela leveza do ser, nem sempre é fácil identificar o que é suave e o que é árduo na vida. Basta observar que muitas pessoas se sacrificam homericamente para obter um prazer futuro, pois a promessa da recompensa parece tornar o sacrifício menos árduo. 

Do pensamento nietzschiano, o narrador saca aspectos da ideia do eterno retorno do mesmo, que se inspira na concepção do tempo como uma espiral, tal como o Oriente antigo adotava, e não como uma linha evolutiva, como prefere a civilização judaico-cristã. Numa espiral, a evolução do tempo não é teleológica, e os acontecimentos se repetiriam ciclicamente no mundo. O que chamamos viver seria uma sucessão eterna de situações já vividas antes. Então, pergunta-se o narrador, seria como se estivéssemos pregados na eternidade, como Cristo na cruz? Assim ele dimensiona o que seria a ideia contrária de leveza, ou seja, o insuportável fardo de viver num replay sem fim. 

Não se pretende aqui aprofundar as ideias filosóficas presentes na obra, mas é importante observar que o narrador de Kundera simplifica a ideia de eterno retorno, tirando-a de seu contexto. Afinal, Nietzsche propôs, com o conceito, superar princípios da cultura judaico-cristã (a tal transvaloração dos valores). A própria existência de Deus (“Deus morreu”, constata o filósofo) e outras crenças, como a de redenção, céu, inferno etc. deveriam ser suplantadas, para que a humanidade seja livre. Se a concepção de vida como um eterno retorno do mesmo parece niilista e sem sentido, por outro lado, a eternidade num paraíso de só felicidade ou num inferno de puro sofrimento parece ao filósofo uma crença sem sentido, além de fatalista. Ao menos, afirma ele, se admitirmos o eterno retorno, é possível que nos libertemos de concepções empobrecedoras da vida e passemos a lhe atribuir novos significados, que não neguem seu caráter dionisíaco, de criatividade, alegria e daquilo que em nós é natureza, nem privilegiem apenas o que em nós é apolíneo, harmonia e racionalidade. Assim, o eterno retorno, na narrativa de Kundera, pesa mais na balança, está no prato do que é grave e pesado; mas, numa interpretação contextualizada, o conceito nietzschiano deveria ocupar o prato do que é suave, o da leveza do ser.

Análises mais autorizadas sobre as qualidades literárias e a trama da narrativa estão desenvolvidas em artigos diversos. Quer se discutir aqui um aspecto específico da tal leveza: seria possível ter a experiência da leveza do ser? Como escapar ao fardo ante a vida? Como viver de maneira leve? Há um caminho para se atingir a leveza? Responder a tais questões seria pretensioso, além de incorrer no risco de fazê-lo à moda dos gurus e coachs. Portanto, não há caminhos a indicar quanto à leveza, mas é possível vislumbrar veredas por meio do pensamento filosófico sobre a experiência dela. Caminhar, brincar e amar podem ser veredas que levam à leveza do ser.

É o filósofo francês contemporâneo Frédéric Gros, em seu livro Caminhar, uma filosofia (2023), quem afirma ser possível vivenciar a leveza do ser pelo ato de caminhar.

A evolução nos levou, de quadrúpedes que éramos, a nos erguermos sobre duas pernas. Essa característica nos propicia um modo específico de andar e de nos relacionar com o espaço e o próprio corpo. O trabalho e a correria do dia a dia nos levam a permanecer mais tempo sentados e arqueados sobre mesas e telas do que eretos sobre as pernas. E essa situação altera a relação que deveríamos ter com o próprio corpo e a percepção de espaço-tempo e realidade.

Caminhar pode reafirmar nossa condição de bípedes e resgatar qualidades que se esmaecem cada vez mais na velocidade da produção industrial e, nas últimas décadas, no tsunami de estímulos e informação em que a era digital nos mergulha. Contudo, alerta Gros, não é qualquer tipo de caminhada que se serve à experiência da leveza. Caminhar não é, por exemplo, a atividade esportiva. Cronômetros, percursos delimitados, disciplina, desempenho, recordes, equipamentos e aparelhagens diversos, nada disso compõe a ideia de caminhar de que fala o autor. Tudo isso é supérfluo para o caminhar, que exige tão somente as pernas de bípedes que somos. O deslocamento a pé e rotineiro casa-trabalho-casa também não é propriamente um caminhar, pois tem em geral percurso, duração e finalidade bastante determinados. O passeio no bairro, no parque, no pátio também não tem as propriedades que o caminhar proporciona, pois ele costuma ser tão somente o intervalo entre um afazer e outro, os minutos de recreio entre duas aulas ou o respiro para o início da nova tarefa que lá espera.

Diversos filósofos adotaram o hábito de pensar em movimento. Aristóteles, chamado de peripatético (“andar ao redor”), por “ensinar andando”, como a tradição perpetuou, mas mais provavelmente por ter o seu Liceu próximo a um bosque, onde muitos atenienses passeavam. O alemão Kant, dizia-se em sua Konigsberg, saía todo dia no mesmíssimo horário para um passeio. Porém, nem um nem outro servem de exemplo do caminhante de que fala Gros. Rousseau e Nietzsche sim, esses foram caminhantes legítimos, e desenvolveram partes importantes de suas obras durante as horas diárias de caminhada que faziam. Ao caminhar, meditavam, refletiam, organizavam as ideias, para depois voltar à mesa de trabalho e à escrita.

A caminhada em meio a natureza pode proporcionar melhores efeitos da tal leveza, pois assim deixamos as atribulações a que a cidade nos submete: a aceleração e o barulho do trânsito, o tempo cronometrado dos semáforos e compromissos, as luzes feéricas que aumentam o desconforto de estar e permanecer, tudo nos centros urbanos nos impele a ir depressa, a correr, menos a caminhar e cultivarmos a suavidade. Portanto, o bom caminhante deve caminhar longe da cidade, se possível.

Todavia, o filósofo, Walter Benjamin propôs um jeito diferente de caminhar, e justamente na cidade. Ele é o flâneur, o caminhante da cidade, no caso, a Paris do século XIX. Para Gros, flanar e caminhar são ideias bastante próximas, mas não equivalentes. O habitante que se dispõe a caminhar ao léu e até se perder pelas ruas, o estrangeiro ou o mochileiro que perambula e também se perde nas descobertas dos novos lugares, eles flanam. Não fazem parte da multidão, observa Gros, passam por ela. Não se veem como um cidadão comum. Resistem à velocidade que a industrialização imprimiu aos centros urbanos. Ao flanar pela cidade, são observadores, parecem não pertencer a ela. Parecem, apenas, pois os flâneurs na verdade admiram a cidade, são urbanos, e por isso não têm com ela a relação que um andarilho, por exemplo, tem, de total negação. 

Tudo que me liberta do tempo e do espaço me afasta da velocidade, afirma o Gros na introdução de sua obra. A experiência da leveza passa necessariamente pela negação da velocidade e de tudo o que dela se impregna: os compromissos inadiáveis, a preocupação com o que não se fez ontem, os prazos, a produtividade, as metas e, também, o excesso de informação e o consumismo… Para se viver a leveza basta o próprio corpo. 

Como fazem as crianças quando brincam, apenas brincam, indefinidamente e pelo simples ato de brincar, muitas vezes sem nenhum brinquedo. Dançam sem música, encenam sem palco um texto que inventam na hora, com outros atores imaginários, porque elas são leves e podem flutuar sobre o peso da realidade, ressignificar espaços e torcer o fio do tempo se quiserem. Por que o fazem? Porque “toda experiência profunda deseja, insaciavelmente, até o fim de todas as coisas, repetição e retorno de uma situação original, que foi seu ponto de partida.” (BENJAMIN, 1994, p. 10). Caminhantes se põem a caminhar pelo mesmo motivo das crianças: pelos significados que inventam para o caminhar, que em si não teria muito sentido.

Pelo mesmo motivo das crianças e dos caminhantes, os amantes querem também a repetição (o eterno retorno não é, pois, um fardo). Quando eles se entregam totalmente, querem se perder um no outro, ocupar um só espaço, talvez anular o próprio tempo e ter de novo e de novo a experiência de amar. 

Brincar, amar e caminhar são, então, possibilidades de ressignificação do corpo, do espaço e do tempo. Nessas veredas, entre outras, pode-se desprender, por mais ou menos tempo, do peso da realidade e viver a leveza do ser. 

Com a leveza haverá, claro, o fardo de viver: os pais chamarão para o banho e a brincadeira terminará; os amantes se extenuarão e a vida terá de seguir além dos lençóis; e a caminhada chegará ao fim. Afinal, como cantou o grupo Secos e Molhados sobre o amor, a vida é “suave, coisa nenhuma [… é] sombra, silêncio ou espuma” (AMOR, 1973). 

*Carlos Zanchetta é mestre em Educação pela Universidade de Lisboa, licenciado e bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo e possui especialização em Ciências Humanas (Letras e História) pelo Centro de Extensão Universitária.

Referências

AMOR. Intérprete: Ney Matogrosso. Compositor: João Ricardo e João Apolinário. In: SECOS e molhados. Intérprete: Ney Matogrosso. São Paulo: Continental, 1973. disco vinil, (2 min 16 seg).

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. 

GROS, Frédéric. Caminhar, uma filosofia. Tradução: Célia Euvaldo. 2. ed. São Paulo: Ubu Editora, 2023. 

KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. Tradução: Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

RÜDIGER, Safranski. Nietzsche: biografia de uma tragédia. Tradução: Lya Luft. 4.ed. São Paulo: Geração Editorial, 2017.

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